Al Berto (1948-1997), o poeta do corpo e da noite, nasceu em Coimbra, mas desde muito cedo veio viver para Sines, onde passou toda infância e adolescência. Refractário à guerra colonial esteve na Bélgica, só regressando a Portugal depois do 25 de Abril. A revista "Imenso Sul", que se publicou no Alentejo entre 1995 e 1999 entrevistou-o dois anos antes da sua morte. Uma entrevista do jornalista Paulo Barriga (actual director do "Diário do Alentejo") que agora publicamos por altura do 66º aniversário do seu nascimento (a 11/1/1948)
À noite, o poeta da noite
Esta entrevista não é uma entrevista, é uma conversa solta que poderá eventualmente ter acontecido numa qualquer noite no Bairro Alto. Esta conversa não é uma conversa, é um circo onde normalmente poderão ter desfilado personagens infinitamente díspares. Este circo não é um circo, é uma travessa repleta de palavras que, como as cerejas, poderão ter desaparecido umas atrás das outras, por vezes consentindo, por vezes com sentido. Esta travessa não é uma travessa, é o silêncio que habita os vários desertos. Como tal, deverá ser lida, ditas, ovacionada, saboreada ou escutada… no vazio do papel.
Imenso Sul (IS) – Al Berto, o poeta do corpo?
Al Berto (Al)– O corpo ocupa um lugar privilegiado na minha escrita. O meu corpo, o corpo imaginado e o corpo do outro. São muitos os corpos que circulam, ou habitam, vivem e morrem no corpo da escrita. Não me importo - guardadas as distâncias e a devida humildade que suscitam sempre estas afirmações – de pertencer a essa linhagem de poetas do corpo: Artaud, Genet, Cesariny… O corpo é um verdadeiro laboratório de experiências físicas e mentais. É nele que se gera e morre a escrita… e tudo o mais…
IS – Um corpo que se torna público?
Al – Um dia talvez possa publicar num jornal um anúncio “Procura-se. Vestia casaco claro, camisa de seda, jeans e calçava ténis. Pede-se a quem o localizar no meio de um dos seus livros que o convença a sair dali e o ajude a regressar ao corpo que abandonou. Talvez se dêem alvíssaras”.
IS – A tua escrita está embebida em sexualidades…
Al – Parece-me que a sexualidade, seja ela qual for, faz parte da felicidade de cada um. Como sempre assumi a minha sexualidade, é normal que ela surja explícita no que escrevo. A censura acabou, parece-me… ou talvez não. O que importa é que quem escreve deixou de ter de esconder o que quer que seja. E, como a minha escrita tem um lado autobiográfico muito forte, seria um disparate autoreprimir-me com o intuito de não chocar, ou de tentar agradar a gregos e a troianos.
IS – São os “olhares” que transportam essas sexualidades…
Al – Quem sabe… se calhar é através do olhar do outro que tomamos consciência do nosso próprio olhar. É pelo olhar que o mundo me chega em primeiro lugar, antes de todos os outros sentidos. E talvez não seja por acaso que toda a minha escrita tem uma componente “visual”, refere com frequência a fotografia e a pintura. Basta dar uma leitura aos livros “Trabalhos do Olhar” e “A Secreta Vida das Imagens” para compreender isso.
IS – O que pensas das mulheres que sobem à tua escrita?
Al – As mulheres que habitam os meus livros são neles tratadas com a maior dignidade. São, talvez, deusas, pitonisas, putas, mas sempre mulheres com M grande. Nunca galinhas. O que acabo de dizer também se aplica aos homens que, como é sabido, também os há que são verdadeiros galináceos. As minhas personagens são seres fortes, apaixonados, mesmo na adversidade, na dor ou na loucura, nos excessos…
IS – A relação leitor/livro pode tornar-se, em algum momento, numa relação poeta/leitor, ou vice-versa?
Al – Que se saiba ainda inventaram relações “virtuais” através do livro, entre o leitor e o autor. Mas é capaz de ser divertido. O que me parece é que há dois momentos distintos: o momento em que se escreve e o momento em que se decide publicar. Quando escrevo, não escrevo para ninguém. Por vezes tenho a sensação que nem para mim escrevo. É misterioso. Talvez escreva por urgência ou necessidade, ou para salvar o dia do imenso aborrecimento. Talvez escreva para me sentir vivo e para continuar a viver- Escrever preserva-me da morte. Quero acreditar nisto! Pode-se, no entanto, escrever uma vida inteira sem publicar. Mas, quando se decide publicar é óbvio que aquilo que escrevemos se destina a eventuais leitores. É, pelo menos, uma tentativa de comunicação com o outro. Embora, às vezes, publicar me pareça um empreendimento inútil.
IS – A pergunta anterior vinha ao encontro da oralidade que a tua escrita encerra. Este “tu-cá-tu-lá” aproxima, inevitavelmente, o leitor à palavra…
Al – É um facto que a oralidade, no meu trabalho, é uma preocupação permanente. Talvez a explicação seja esta: os meus poemas estão, muitas vezes, à beira de se transformarem em narrativas. E, por outro lado, as narrativas que escrevi aproximam-se muito dos poemas. É assim! De qualquer modo há, nos dois casos, uma forte oralidade.
IS – Estamos a falar de “prosemas”?
Al – Não sei… confesso que nunca me preocupei muito com as fronteiras dos diferentes géneros. Deixo isso para as academias. Quando escrevo sucede, frequentemente, que é o próprio texto que me leva, ou obriga, a ir numa ou noutra direcção. Ainda em relação à oralidade: parece-me que nunca publiquei nada que não tivesse lido vezes sem conta em voz alta. Não pode haver engasgues nem atropelos… até porque leio em público com regularidade e odiaria ler-me aos solavancos, ou ter dificuldade me fazê-lo Por fim, penso que todo o poema precisa de uma voz.
IS – O livro “Três Cartas da Memória das Índias” é um exemplo acabado da oralidade na tua escrita.
Al – Esse livro foi inicialmente escrito a convite do Ricardo Pais para ser levado ao placo. Mas, por razões financeiras, nunca se concretizou o projecto, apesar de já haver vídeos começados e outro material reunido. Excertos desse livro acabaram depois por aparecer no espectáculo que o Ricardo montou com o Ballet Gulbenkian, intitulado “Só Longe Daqui”. Por fim, resolvi reescrever tudo e publicar, salvaguardando, de facto, a oralidade inicial que os textos tinham.
IS – Para mais, nem gostas de teatro…
Al – O teatro em geral é uma coisa que me dá imenso sono. Não sei porquê, mas dá. Não se pode gostar de tudo na vida, não é? O que acabei de dizer não significa que eu meta todo o teatro que vejo no mesmo saco. Infelizmente, o saco onde meto o que não gosto está a abarrotar.
IS – Neste livro, peça, por que razão escreveste ao pai, ao amigo e à mulher?
Al – O ponto de partida era a criação de um personagem que escreve quatro cartas a despedir-se. O Ricardo pediu-me cartas à mulher, ao pai, ao amigo e ao patrão. A última não a escrevi porque nunca tive um patrão. As outras três surgiram como um triângulo que me suscita paixões. Fascinava-me, também, esse personagem que diz adeus e não sabe ao certo para onde vai, ou se se suicida, ou se a despedida não passa de mera fantasia, ou farsa. O resto está no livro.
IS – Atrás disseste que deixavas as análises para as academias. É sabido que os teus livros são amplamente esquartejados nas universidades. Que ideias fazes dessas análises literárias?
Al – Tudo isso me dá vontade de rir e está muito longe das minhas preocupações e da minha vida. Mas dizem que sim, que o fazem, não sei se abundantemente ou não. A universidade, em geral, é provavelmente a coisa que mais mal cheira… é dar-lhe de comer com cuidado e logo se põe a mastigar. Depois, vomita tudo muito certinho… Às vezes penso que a universidade não passa de um lugar de encontro para arranjar casamentos, Não sei. Parece-me é que, cada vez menos, é um lugar com a dignidade que deveria ter.
IS – Um exemplo.
Al – Repare-se no gosto merdoso dos estudantes pro essa coisa inominável que é a música do Quim Barreiros. Claro que há excepções. Mas esta situação de um gosto imundo que se foi uniformizando dá-me náuseas. Isto tem de certeza um preço e já estamos a pagá-lo.
IS – Tu até fazes parte dos novos compêndios secundários…
Al – Entrar nos compêndios não está no querer ou não querer dos autores. É uma decisão que lhes escapa, é mau. Mas, no fundo, pergunto-me o que adianta ou atrasa, ou o que mudará, com a inclusão do Al Berto, do Joaquim Manuel Magalhães, do João Fernandes Jorge, do Nuno Júdice, ou mesmo do Al-Mu’Tamid, nos compêndios? Rigorosamente nada! No que me diz respeito, foi a pior coisa que me aconteceu ultimamente. Para mais contam-se pelos dedos os professores que lêem e conhecem a poesia que se está a escrever em Portugal. E quanto ao Al-Um’Tamid ainda te vão dizer que foi um terrorista que desviava aviões.
IS – Não consideras importante o estudo dos clássicos?
Al – Ele é indispensável. Mas é preciso achar a melhor maneira de o fazer. Não podes ensinar Camões, Gil Vicente, Camilo ou Pessoa, como se estivesses a servir um cozido à portuguesa. A intuição dita-me que seria mais fácil começar por autores actuais, com quem os alunos pudessem falar e discutir. Ir recuando, depois, progressivamente, criando sentidos, afinidades, pontes… Mas não sou especialista nem professor. Eles que se pronunciem, não é? O meu papel é escrever, nada mais.
IS – O primeiro contacto que o público faz com a poesia contemporânea é através da crítica literária. Que imagem guardas dos críticos portugueses?
Al – Um assunto delicado. Vou ser rápido porque a coisa não me merece grande atenção. Tirando quatro ou cinco nomes (não vou dizer, mas sabe-se quais são), a crítica é nula e os críticos, em geral, nulos são. A maioria comporta-se como pequenos vampiros à beira do vómito para sobreviverem. São execráveis. E parece que surgiu por aí uma turma de barbies a despejar indigências, disseram-me… porque eu há muito que não leio críticas nenhumas.
IS – A crítica pode influenciar a atribuição de prémios. O Herberto Hélder, por exemplo, rejeitou o Prémio Pessoa. Também o farias?
Al – Francamente não sei se a crítica influencia alguma coisa. O que sei é que é completamente tonto pensar que o Herberto aceitaria um prémio. Sabe-se isso, é público há muitos anos. O Herberto merece um respeito sem fim, é um dos grandes poetas europeus vivos. Indignaram-me os relatos cretinos da ida a casa dele (publicados no Expresso) para tentarem convencê-lo a aceitar o prémio. Não se faz.
IS – Aceitarias o prémio ou não?
Al – Os prémios são assunto exterior ao autor e obra. É uma história de dinheiro que te cai em cima, sabe-se lá porquê. E cada um faz o que muito bem lhe aprouver. Recebe ou não recebe, é tudo. Pessoalmente, e não te vou mentir, o dinheiro dá-me muito jeito, nunca o escondi, venha ele dos prémios ou de outra fonte. Estou-me nas tintas, preciso dele é para o gastar.
IS – A poesia portuguesa é bem vista lá fora?
Al – A poesia portuguesa é uma das mais ricas e interessantes da Europa.
IS – E a prosa?
Al – O meu silêncio é total em relação à prosa. Já não sei se a prosa portuguesa ocupa muito ou pouco espaço nas minhas leituras. Creio que pouco…
IS – Os nossos romancistas estavam na linha de partida para um Prémio Nobel…
Al – Estavam? Engraçado. Foi de gargalhada o que se disse e escreveu por aí sobre o Nobel. Lembro que, curiosamente, foram alguns poetas a escrever muitos dos melhores romances deste meio século… de resto, sempre achei que se o Nobel viesse para Portugal seria atrubuído a um poeta.
IS – O Al Berto é um poeta de dicotomias. De relações antagónicas: homem/mulher; dia/noite; cidade/província. Onde é que o Alentejo cabe neste quadro de antíteses?
Al – Pela sua imensidão, o Alentejo ainda é o lugar onde gosto de viver, quando não estou em Lisboa. É o lugar onde se torna possível caminhar e fingir que não sabemos o que está para lá da linha de horizonte… ou ficarmos assim, parados, a esvaziarmo-nos do bulício do mundo, ou deixar a sua imensidão entrar em nós e cristalizar no mais fundo do coração, olhar os sobreiros e as oliveiras incendiarem-se ao meio-dia impiedoso do sol, e saber que esse fogo vai dentro de nós, mesmo quando se atravessam longínquos continentes. É no Alentejo que se pressente o deserto que começa na outra costa, a de África, e esse outro deserto está dentro de nós, onde podemos caminhar horas a fio sem encontrar ninguém. Exactamente como quando caminhamos na planície sem fim e descobrimos que não temos sombra.
IS – O mar também é um deserto.
Al – Sim, o mar também é um deserto. Mas este deserto em eterno movimento deu-me o primeiro ruído de que me lembro. O marulhar das águas é o ruído mais antigo da minha infância e se calhar vai ser o último que ouvirei. O mar dá-me sempre uma vontade imensa de fugir por ele dentro. Mas como não posso fazê-lo, interiorizei-o de tal modo que basta fechar os olhos para o ouvir. E se não me mexer durante horas consigo viajar ou fugir. De tempos a tempos faço isso, vou-me embora.
IS – É no deserto noctívago da cidade que mais vezes te perdes?
Al – A noite e a cidade são para mim inseparáveis. São o meu terceiro deserto. Aquele que atravesso com frequência, o desejo à flor do olhar. Nele encontro os jogos de sedução, o tempo que parece ter parado, as pequenas e grandes derrotas do amor, as paixões intensas, mas que duram pouco. A noite é um espaço de magia, onde a imaginação e o corpo podem navegar em quase total liberdade. E como sou um animal profundamente urbano, é a noite das grandes cidades que me atrai, com todas as suas mentiras, ilusões e verdades. Por vezes a noite oferece-me um pouco de melancolia, um pouco de alegria e quem sabe se não nos põe no meio do caminho um rosto que sorri e desaparece no escuro. Muito tempo depois ainda nos lembramos desse sorriso. Voltamos a percorrer a noite, a cidade, as ruas sem nomes, uma música que nos ficou na memória… um álcool que nos recorda uns lábios… sempre na esperança de reencontrarmos aquele rosto. Mas a noite das cidades é cruel, ficamos quase sempre sós. Porque a solidão talvez seja o destino, ou a condenação, daquele que escreve…
Paulo Barriga
(publicado na revista “Imenso Sul”, nº 2 de Abril a Junho de 1995)