"Nesta fase da minha vida escolar, em que, concluída a primária, ainda tinha bem presente a História de Portugal e o destaque dado à independência, em 1640, e à defenestração do infeliz Miguel de Vasconcelos, no Paço da Ribeira, em Lisboa, contactei com outro 1º de Dezembro, o da nossa festa no Liceu que o meu pai frequentara, a começos do século XX, nos anos em que Florbela Espanca também por lá passou.
Mesmo antes de ali entrar, eu estava a par deste que era o seu maior acontecimento festivo. Conhecia-o através do meu irmão mais velho, Francisco José, entretanto saído para a Universidade, em Lisboa, e, também, pela minha irmã Maria de Lourdes, a frequentar o 5º ano. Por eles eu sabia da grande noitada da véspera, iniciada com o ensaio geral da récita do dia seguinte, no Teatro Garcia de Resende, e continuada com as tradicionais ceias dos estudantes mais velhos. As raparigas não tinham essa liberdade e nós, rapazes mais novos, iríamos esperar que chegasse a nossa vez de homenagear, dessa forma, os heróis da restauração.
No desconforto e no frio de uma garagem, de um armazém ou de um qualquer barracão, estes estudantes, muitos deles a experimentarem a primeira noite fora de casa, comiam e bebiam, dando largas à sua condição de adolescentes libertos das balizas da escola e da família. Tocados, uns mais, outros menos, pelo efeito do álcool, a que não estavam habituados, acabavam por sair para a rua em grupos, cantando, correndo e gritando “efe-erre-ás”, enchendo a madrugada de animação para uns e de desassossego para outros. Nessa noite a vigilância policial era reforçada, não para os reprimir, mas sim para os controlar e minimizar os excessos, que sempre havia.
Ao nascer do dia, roucos de tanto gritarem, reuniam-se no Liceu, de onde saíam com a Tuna Académica (Fundada no 1º de Dezembro de 1902), dando cumprimento à tradicional alvorada, percorrendo a cidade, tocando e cantando o Hino da Restauração e o do Liceu, e soltando mais e sempre mais “efe-erre-ás”, lançando capas ao ar. A primeira paragem era na rua do Conde da Serra, frente à casa do Reitor. Da janela do 1º andar, em roupão, o Dr. Gromicho ouvia os dois hinos em posição de respeito, e, depois, acenando os braços, sorria aos “efe-erre-ás”, que eu também gritei quando chegou a minha vez. Nessas manhãs ele fechava os olhos à irreverência dos seu pupilos que, àquela hora, mais mortos do que vivos, curtiam a ressaca, caídos de sono.
Naquele tempo um Reitor de liceu tinha de ser um homem da confiança do regime e o Dr. Gromicho era-o, não só como membro da União Nacional, mas também, como deputado à Assembleia Nacional, de partido único. Não obstante este comprometimento político, o nosso Reitor sempre apoiou o uso da tradicional capa e batina, fazendo orelhas moucas às directrizes, vindas de Lisboa, no sentido de incrementar o uso da farda da Mocidade Portuguesa. - "Quem tem capa, sempre escapa" - dizíamos, repetindo uma frase corrente nessa época, e era assim, de negro, como os corvos, que nos movimentávamos em qualquer ambiente, desde jogar à bola, calças arregaçadas, capa e batina no chão, fraldas de fora e meio empoeirados, à presença nos salões, onde a gala ditava as vestes e a compostura.
Um parêntesis para lembrar que o traje de capa e batina, um privilégio radicado na tradição de uma imposição aos alunos deste liceu, por Portaria do Ministério do Reino, de 27 de Outubro de 1860, ao tempo de D. Pedro V. Até então este traje académico fora exclusivo dos estudantes da Universidade de Coimbra.
Depois do almoço do dia 1, refeitas as energias, tínhamos a Tarde Desportiva no campo de jogos do liceu. O professor Mariano, atlético e de voz bem timbrada, conduzia a exibição e as evoluções das suas classes de ginástica, ensaiadas à perfeição. Mas o melhor da festa eram as competições de voleibol e basquetebol, nas quais os nossos colegas mais crescidos defrontavam as habituais turmas adversárias, quase sempre as da Escola Comercial e Industrial Gabriel Pereira (Gabriel Victor do Monte Pereira, historiógrafo nascido em Évora em 1847).
Nessa tarde distribuía-se “O Corvo” em edição especial da efeméride e em cuja feitura participavam professores e alunos. Semelhante a qualquer um dos muitos que sempre se fizeram e fazem no seio das escolas, “O Corvo” com a figura da ave, de capa e batina, na primeira página, era o nosso jornal e o jornal do 1º de Dezembro (o primeiro número de “O Corvo” surgiu no dia 1 de Dezembro de 1921).
À noite tinha lugar a récita, por tradição no Teatro Garcia de Resende e, anos mais tarde, no grande salão do Ginásio, depois deste novo edifício ter vindo ampliar as instalações do liceu. Preparada e ensaiada ao longo dos meses de Outubro e Novembro, a récita incluía actuações da Tuna e do Orfeão Académico, uma pequena peça de teatro, via de regra, uma comédia em um acto, e um espectáculo de variedades com recitação de poesias, canções a solo, a dois ou a três, danças e cantares do folclore nacional, sob a direcção, nesse tempo, da dona Maria do Carmo, senhora de volumosa estatura, mas de uma leveza e de uma alegria contagiantes, que tinha artes de dar voz e pôr a cantar os mais desafinados.
Num camarote central, em lugar de destaque, o Reitor assistia à totalidade da récita, ladeado por alguns professores. A dona Maria do Carmo e o senhor Gasparinho, o ensaiador da peça de teatro, permaneciam nos bastidores, dando as últimas instruções e fazendo recomendações.
A começar, sempre com atraso, as luzes esmoreciam, e um aluno dos mais antigos, iluminado por um círculo de luz, vinha à boca de cena, dizia umas breves palavras de apresentação e de cumprimentos, findas as quais o pano subia, lentamente, abrindo o palco ao público, com a Tuna Académica já perfilada. E ali estava eu, o mais pequeno do grupo, vestido de capa e batina feitas à medida pela minha mãe, de pandeireta na mão, repleta de fitas, caídas até ao chão. Aos primeiros acordes do Hino do Liceu, as fitas, brilhantes de seda e de todas as cores, esvoaçavam entre cotovelo, mão, cabeça, joelhos e pontas de pé, marcando o ritmo. A seguir ouvia-se o Hino da Restauração e, por último, os “efe-erre-ás”, particularmente sonoros lá em cima, nos “galinheiros” (lugares mais baratos, por cima dos camarotes mais altos, frequentados pelos espectadores de menores posses) em gritos que enchiam e quase deitavam abaixo a sala.
A programação ia-se cumprindo, sempre prolongada noite adentro, com pausas intermináveis para mudar cenários, alegradas por animadores de ocasião, dizendo versos, contando anedotas e sempre, sempre, pedindo compreensão para os atrasos. Nestas idades, o maior gozo era prolongar o serão o mais possível e, tanto o Reitor como os nossos pais, que ali estavam como espectadores, sabiam que assim era.
No último intervalo, altas horas, uma comissão de alunos, à semelhança do que sempre se fizera e sabendo antecipadamente a resposta, dirigia-se respeitosamente ao Reitor, solicitando-lhe tolerância de ponto para as aulas da manhã que surgiriam daí a meia dúzia de horas. De seguida, com expressões nos gestos e nos olhares que confirmavam o que todos já esperávamos, subiam ao palco e anunciavam:
- Amanhã não há aulas da parte da manhã!
- Viva o senhor Reitor! Viva!
- Viva o 1º de Dezembro! Viva!
- Efe-erre-á! Fra!, Efe-erre-é! Fré!..."
António Galopim de Carvalho (aqui)