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Natal

Escrever uma crónica que vai para o ar no dia de Natal não é uma tarefa fácil para mim, que tenho numa relação estranha com o que se vive nesta época.
Gosto dos cheiros e das cores do Natal. Gosto das luzes e dos cânticos, gosto dos olhos brilhantes das crianças que ainda acreditam no pai natal, gosto do frio próprio da época, gosto de ficar aflito no dia 23, sem saber que vou fazer para o comer no dia 24 e de ir ao supermercado ainda na véspera porque me esqueci de quase tudo.
Gosto de revisitar a minha infância e de descobrir que as coisas não até nem foram más de todo e quando o foram teve a ver com o facto de eu não ser propriamente uma criança fácil.
Gosto de imaginar que toda a gente guarda para este período um tempo de reflexão, de olhar mais aprofundado para o que a rodeia, desliga a televisão e fica a olhar a vida.
Sei que não é assim e é por isso que todos os anos se repetem as mesmas frases e se vai imaginando que nada mudou, excepto os lugares na mesa que ficaram vazios.
Depois há um outro Natal, que eu presenciei no almoço da véspera. O Natal em que dezenas de pessoas se sujeitam a que lhes ofereçam uma refeição, gente que o passado parece ter empurrado para um presente sem perspectiva de futuro.
Gente que tem de se sujeitar ao discurso dos seus benfeitores, que os infantiliza ao ponto de perguntar “sabem porque estamos aqui hoje?”.
Gente que leva a 24 o almoço de 25, em sacos de plástico azuis, um por cada pessoa, devidamente controlados por uma lista que não deveria existir.
Apesar de tudo isto, não é possível não elogiar as organizações que promovem este tipo de intervenção, sem a qual muita gente não comeria nem no Natal nem em muitas outras épocas do ano, apesar de se perceber que algumas motivações individuais nada têm a ver com a ajuda aos que foram atirados para o limbo da sobrevivência.
Das muitas pessoas que estavam a ajudar na confecção e na distribuição do almoço foi perfeitamente possível distinguir os que ali estavam por sentirem que deviam estar próximos de outros seres humanos, num momento em que todos os sinos tocam a mesma música, uma música que os mais pobres não podem acompanhar e aqueles para quem aquele é um momento em que se olham ao espelho repetidamente para reverem a sua bondade.
Como se notam esses tiques?
Quando num simples discurso de distribuição de tarefas pelos voluntários a palavra “eles” é repetida vezes sem conta.
Quando em cada conjunto de alocuções há pelo menos um preconceito presente, seja a propósito da quantidade de comida, seja a propósto das rotinas das pessoas que ali estão para almoçar.
Quando deixam de ter um ar incomodado por existirem seres humanos que necessitam do apoio de instituições de solidariedade social e passam a ter o ar de quem se acha imprescindível para esse fim.
Quando aceitam a pobreza como uma inevitabilidade.
Quando ficam felizes por ajudar, quando deveriam ficar infelizes por existirem pessoas que precisam dessa ajuda.
Infelizmente a sociedade baseada na busca do lucro e na crença de que essa busca individual resultará sempre em melhores condições de vida para todos, leva milhões de pessoas à miséria extrema da humilhação diária para uma refeição quente.
Pergunto-me: sem a resposta destas instituições como seria o dia a dia de pessoas de todas as idades, muitas delas sem nenhum meio de subsistência?
Nesta altura o meu filho mais novo diz-me “acende a luz, pai”.
A metáfora é boa filho, mas há coisas que o pai não é capaz.
Até para a semana

Eduardo Luciano (crónica na Rádio Diana)

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