A QUESTÃO DO BUSTO DE FLORBELA ESPANCA (2)
O clima de fera hostilidade reinante na imprensa católica, em relação a tudo quanto respeitasse à poetisa calipolense, deu sinais de ligeiro abrandamento a partir de 1942, ano em que José Fernando de Sousa, o Nemo, morreu. O novo director de "A Voz" não era tão afeiçoado à causa da estigmatização de Florbela e vai deixando de a alimentar de forma tão sistemática e frequente.
O mesmo não sucedia em Évora onde os padres fascistas (como Vergílio Ferreira lhes haveria de chamar) continuavam a desancar Florbela e a armar-se nos guardiões e paladinos da moral citadina. Os mais conhecidos eram o dito pimpão Alegria, agora professor de Canto no Seminário e polícia das ideias alheias e o cónego Francisco Maria da Silva. vigário da Arquidiocese e que mais ascenderia a Arcebispo Primaz de Braga.
Ambos eram professores de Religião e Moral dos cursos nocturnos mistos, destinados a adultos e trabalhadores, da Escola Comercial e Industrial Gabriel Pereira. Julgando-se intocáveis, eram detestados por todos os alunos que tinham de os suportar, dado que nesse tempo, a disciplina era obrigatória e sujeita a avaliação trimestral e anual como qualquer outra. Achavam-se por isso as autoridades máximas da Escola.
Em determinado dia de finais do ano lectivo de 1945-46 decidiram entrar desabridamente pelo gabinete do director da Escola para lhe pedirem explicações sobre um baile de finalistas que se havia realizado sem o seu conhecimento e autorização (tal e qual), no qual haviam participado professores e professoras, alunos e alunos e que, segundo eles, tinha decorrido em ambiente de grande promiscuidade. E o que disseram em altos gritos lançados em tom injurioso que se ouviram no exterior, faltando ao respeito do seu superior hierárquico, repetiram-no em toda a cidade.
A reacção dos visados foi imediata. O Director participou o caso ao Ministério, acompanhado de testemunhos de professores, alunos e empregados. O ministro Fernando Pires de Lima abriu um inquérito rigoroso no decurso do qual se apurou que «ambos haviam exercido na Escola uma acção perturbadora e deseducativa», pela qual os contratos não lhes seriam renovados, expulsando-os assim do quadro de docentes.
As conclusões do inquérito foram tornadas públicas no jornal "Correio do Alentejo" sob a forma de esclarecimento do Ministério da Educação Nacional, dado que o periódico, afecto ao regime, havia censurado as sanções aplicadas aos dois eclesiásticos, naquilo que apelidara em número anterior de «Expulsão de Jesuítas» procurando inocentá-los.
Poderá perguntar-se qual a relevância deste episódio no caso da perseguição a Florbela? É que Alegria, desacreditado na cidade, viu-se obrigado a deixá-la por uns anos. Foi a isso compelido pela hierarquia católica que o mandou estuda para o Instituto Superior de Música Sacra em Roma, pelo que deixou de orquestrar a campanha contra Florbela Espanca.
Entretanto o final da guerra, a derrota nazi-fascista, a necessidade de transmitir para o exterior uma imagem de democracia e a realização de eleições legislativas permitiram um aligeiramento da censura, nomeadamente a de índole intelectual. O poeta Jorge de Sena pôde por isso, em 1946, numa conferência realizada no Clube Fenianos no Porto, trazer à tona a obra de Florbela, para falar do seu "donjuanismo" feminino referindo que os seus poemas eram de uma fúria inaudita, exemplo da violência que a escritora exercia sobre si própria»
Na esteira de Sena e citando-o abundantemente, José Régio, poeta católico que vivia em Portalegre, escreverá que «a obra de Florbela é a expressão poética de um caso humano. Decerto para infelicidade da sua vida terrena, mas para glória do seu nome e glória da poesia portuguesa, Florbela viveu a fundo esses estados, quer de depressão, quer de exaltação, quer de concentração em si mesma, quer de dispersão em tudo, que na sua poesia atingem tão vibrante expressão. (...) Nenhuma poetisa porém, viveu até hoje, viveu tão a sério um caso excepcional, e ao mesmo tempo, tão significativamente humano» (...) Nenhuma com tanto talento vocabular e métrico, talhou um soneto como quem talha um vestido ».
Com o ambiente a mostrar tendências ao desanuviamento, a escritora e antiga discípula de Florbela, Aurélia Borges, que no ano anterior publicara um trabalho sofre a poetisa e a sua obra (Lisboa,Edições Expansão), pediu por escrito a 28 de Janeiro de 1947, a António Bartolomeu Gromicho que enquanto presidente do Grupo Pró-Évora, tomasse posição sobre a instalação do busto. Gromicho responde-lhe que o Grupo continuava atento à situação e já voltara a mexer no assunto mas que deparou com uma «inesperada e violenta reacção dos vereadores municipais». Também o Ministro da Educação se mostrara amável e elogioso quanto ao valor da poetisa mas terminara por lhe dizes que a sepultura "estava ainda muito quente" e portanto não consentia a homenagem nem Évora nem qualquer outro ponto do território português».
Mas a luta entre "florbelianos" e seus inimigos estava bem equilibrada e mesmo os intelectuais favoráveis ao regime eram de opinião de que se devia conceder autorização para a instalação do busto.
Vitorino Nemésio avisa mesmo que «a rapidez com que a lenda já se apropriou de Florbela mostra bem como estamos em presença-creio que pela primeira vez na literatura portuguesa- de uma poetisa musa. Mais do que isso; de uma deidade ou de um duende, um ser mitológico de que já alguns poetas autênticos (Manuel da Fonseca, por exemplo, já se apoderaram para fazer dela a alma da planície alentejana, "genious loci" errante entre o piorno e as estevas».
Salazar percebe o perigo e preconiza uma solução airosa, tanto mais que estão à porta as eleições para a Presidência da República, a disputar entre Carmona e Norton de Matos. É assim que se negoceia entre a Câmara de Évora, o Governo Civil e o Grupo Pró-Évora (a Igreja é excluída do processo) a implantação do busto que deve decorrer de forma o mais discreta possível, não oficial, e com escasso número de convidados. No dia 17 de Junho de 1949 o busto de Florbela é finalmente colocado no se pedestal. Ao acto apenas assistem representantes do Grupo Pró-Évora e elementos da Câmara e do Governo Civil.
Julgava-se que o caso estava encerrado, com o menor ruído possível a a contento das partes. Não seria assim. O Cónego José Augusto Alegria depois de jornadear pelo estrangeiro, regressa a Évora em 1951 e vem de novo disposto a provocar escândalo.
O seu espaço natural de escrita é o "Novidades" para onde envia novo escrito onde reconhece, com indignação que em oposição a esse desiderato «escrevera em vão mais de doze artigos, oito dos quais na página literária deste jornal, coordenado e
superiormente dirigido por Monsenhor Moreira das Neves». Restava-lhe «a consolação de saber que nenhum eborense contribuíra para erguer o busto da poetisa. Foram autores do atentado forasteiros com títulos mais ou menos honorários». Uma redonda falsidade.
Mas Alegria não se deu por satisfeito. Em 1955 fazia sair em edição da Fundação D. Manuel da Conceição Santos um livro com o título " A poetisa Florbela Espanca- o processo de uma causa" no qual insultava, de uma forma reles e ordinária a mulher falecida de forma trágica havia já um quarto de século. Nele afirmava que "Florbela até era sincera mas era uma sinceridade de bordel» E mais adiante: Poetisa do Alentejo? Antes Maria das Quimeras no mínimo que se pode dizer(...) Não foi o Alentejo com as suas sombras, as suas distâncias ou a profundidade dos seus silêncios que mereceu os afectos da poetisa. Foi uma quimérica ansiedade que lhe fez sorver em haustos de profunda ansiedade a vida, levada a cantar e a gritar em tantos versos que são uma autêntica prostituição de todos os sentimentos femininos».
O comportamento da Igreja neste caso foi vergonhoso. O do Padre Alegria dispensa comentários. Diz-se que este se penitenciou de tudo isto já depois de 1974. Desconheço em absoluto esse acto de contrição público.