Carta de Demissão de Ana Drago da Comissão Política do BE
Aos membros da Mesa Nacional do Bloco de Esquerda, Camaradas
Esta carta serve para comunicar a minha demissão da Comissão Política do Bloco de Esquerda aos membros da Mesa Nacional e da própria Comissão Política, e apresentar as suas razões.
Esta foi uma decisão muito ponderada, e, confesso-o, que me entristece. No entanto, as discussões que ocorreram ao longo das últimas semanas no seio da Comissão Política tornaram clara uma divergência profunda e fundamental sobre a estratégia do Bloco na presente conjuntura.
Nas últimas semanas, foi colocada à direcção política do Bloco de Esquerda a possibilidade de participar num processo de convergência que pudesse resultar numa candidatura única às eleições europeias, que integrasse o Bloco de Esquerda, o recém-criado Manifesto 3D, a Renovação Comunista e o anunciado partido Livre.
As dificuldades processuais dessa candidatura eram várias, e relevantes. Contudo, um modelo de articulação não chegou sequer a ser equacionado – a direcção política do Bloco de Esquerda não se mostrou disponível para iniciar um debate programático com alguns dos possíveis participantes nessa convergência. Com essa exclusão antes mesmo de se debater um programa conjunto para as eleições europeias, a possibilidade de uma candidatura alargada fracassou.
Este processo de convergência era, a meu ver, não só desejável como determinante para este campo político de esquerda, e portanto para o Bloco. Significaria uma vontade política de construir uma alternativa sustentada e credível de esquerda, num país que vive um ataque sem precedente ao modelo social e político da sua democracia.
Portugal vive hoje um processo de desmantelamento de direitos sociais fundamentais e destruição do modelo de solidariedade entre segmentos da população e entre gerações – é uma reconfiguração profunda da articulação entre liberdades políticas e direitos sociais que sustentaram a democracia portuguesa nos últimos 40 anos. A agressividade desse ataque ameaça desfigurar de forma irremediável o regime, e desenhar um futuro de desqualificação e empobrecimento duradouro do país. De facto, os direitos sociais e laborais, e os modelos de solidariedade que estão hoje a ser destruídos foram conquistados numa conjuntura histórica única, e a sua recuperação num futuro próximo não será fácil. O que coloca uma urgência nunca antes tão sentida de parar este ataque fanático e revanchista da direita portuguesa, através da criação de uma alternativa credível e alargada de esquerda.
Vivemos, nesse sentido, um momento histórico – trata-se de salvar um modelo de democracia e o futuro do país. É por isso que uma estratégia de esquerda que queira resgatar o país desta espiral de destruição tem que ser tão ampla a alargada quanto possível, em torno de princípios programáticos essenciais. Defender a reestruturação da dívida, a reposição do rendimento dos trabalhadores e pensionistas, o aumento do salário mínimo, a sustentação dos serviços públicos e dos direitos laborais,o combate ao desemprego e à precariedade, o investimento na qualificação da economia portuguesa – este é, creio, o programa necessário nos tempos actuais.É certo que este não é todo o programa político do Bloco de Esquerda, mas é aquele que identifica quem está disposto a assumir a responsabilidade de defender o país – e esse deve ser o campo de política de unidade do Bloco de Esquerda.
O Bloco constituiu-se como uma esquerda que não se rende a fazer uma gestão apenas mais benevolente do statusquo, mas que também não fica satisfeita apenas por existir. A vontade de não desistir de transformar a sociedade permitiu a articulação entre diferentes correntes e tradições, que antes se pensavam inconciliáveis, assente na percepção de que a nossa unidade na luta e no projecto transformador é mais importante do que as nossas diferenças.
No actual momento do país, essa vocação para a unidade da esquerda é ainda mais necessária, e mais urgente. E deve ser ainda mais ampla, percebendo o óbvio – que a política unitária se faz sempre com aqueles que são diferentes de nós, é essa a sua natureza.
A proposta que foi colocada ao Bloco de Esquerda apelava a uma convergência com um espaço político que, sendo diferente do Bloco, é certamente aquele que é politicamente mais próximo. Senão for com estes actores, não se fará convergência com ninguém – e o Bloco fica sem qualquer estratégia de alargamento e convergência. O que significa que a proposta de governo de esquerda, enunciada na moção que ganhou a convenção do Bloco de Esquerda, resulta apenas num slogan. Ora, isso é grave para uma força política com a identidade do Bloco de Esquerda, e é particularmente grave na actual situação política do país.
Sei bem que a proposta de convergência que nos foi dirigida não permitia resolver todas as dificuldades de uma política alternativa para o país. Estou bem ciente do muito caminho que temos ainda que fazer, de como ainda temos fraquezas e muita luta pela frente.Mas permitia agora, no debate determinante sobre a Europa, lançar uma dinâmica de alargamento e mobilização que fazem hoje tanta falta ao Bloco.
Por entender que esta proposta de convergência à esquerda era um passo essencial na construção de uma alternativa de esquerda para o país; e por entender que a identidade, o papel e a responsabilidade histórica do Bloco de Esquerda é construir essa convergência,não posso hoje, em consciência, permanecer na Comissão Política.
Desde que me juntei ao Bloco de Esquerda, sempre entendi que, para a luta que temos que fazer, a unidade deste campo da esquerda é mais importante que as suas diferenças. Do muito que vivi e aprendi ao longo deste 14 anos no Bloco, acredito ainda mais nesta necessidade de unidade.
Não sei – talvez não saibamos sobre nós próprios – se terei o discernimento e a capacidade de construir uma solução de esquerda para o país. Mas sei hoje, claramente, que não quero fazer parte do problema.