Nelson Mandela, sentinela da esperança ativa
Nelson Mandela, tal como Gandhi e Martin Luther King, pertence àquela categoria de homens que se impõe como depósito do melhor que o género humano consegue cristalizar em cada momento da história. “Sentinela da humanidade”, acaba de dizer o pensador contemporâneo Sami Naïr a seu respeito, o seu desaparecimento é motivo de meditação em torno das potencialidades do humano em “dark times”. Com efeito, o mais importante deste homem não é tanto a sua ação política enquanto político e dirigente partidário, futuro primeiro presidente negro da África do Sul, mas, antes, a sua ação profundamente reflexiva, a sua visão abrangente dos problemas, a sua luta pela esperança concreta.
Agora, no momento em que passa à imortalidade, Mandela faz-nos pensar. Porquê? Porque soube perdoar, tendo o poder, após 27 anos de prisão. Porque soube olhar todos na sua humanidade com verdadeira cultura democrática. Porque soube ser líder sem se impor, antes sendo reconhecido. Porque soube romper a brutalidade da força, através de uma enorme densificação da legitimidade, numa sociedade que apenas conhecia a opressão política, a desigualdade social e o desprezo étnico organizados.
Estas qualidades ultrapassam a mediania dos políticos habituais. De algum modo, e sem querer tombar em anacronismos inúteis, dir-se-ia que Mandela pertence àquele tipo de homens característicos de momentos históricos únicos. Há décadas, o pensador alemão Karl Jaspers teorizou a “Era Axial”, que situou entre 800 e 200 a.C., quando a um tempo surgiu em diversas partes do mundo uma nova forma de pensar, com Buda, os “Upanishads”, Sócrates, Confúcio, Platão, Eurípides, religiões como o zoroastrismo ou o judaísmo, entre outros. Este tempo foi despedaçado por guerras e tragédias imensas, como se sabe, mas marcou o futuro da humanidade até aos dias de hoje, na medida em que se traduziu num “salto”, marcando o momento em que os homens passaram a problematizar o seu destino e, com muito diferentes percursos e tradições, a demonstrar que na história individual e coletiva nada está escrito.
O percurso de Mandela poderia de algum modo resumir-se nesta ideia: nada está escrito, porque os seres humanos conseguem, mesmo por entre uma violência histórica maciça, equacionar saídas para as encruzilhadas com que se deparam, conseguem manifestar a sua plasticidade cultural, conseguem resistir ao desenraizamento e à desorientação, rumo a uma maior emancipação.
Sob este ponto de vista o percurso de Mandela é ímpar, mesmo que tenha cometido erros políticos pontuais e fosse, como ele mesmo reconheceu por diversas vezes, imperfeito: pacifista por princípio, resistente frente à violência ilegítima, sofrendo a irracionalidade do poder arbitrário, acaba por saber sair vencedor e saber ser inclusivo, sabe conquistar o poder e, depois, cumprindo apenas um mandato, sabe retirar-se da vida política preservando os princípios ético-políticos que sempre nortearam a sua longa luta pela liberdade.
Ora, num mundo como o de hoje, tecno-económico, instrumental e desenraizado relativamente aos valores da liberdade que diz defender, governado por elites político-económicas desorientadas que estilhaçam sem conseguir reconstruir, dominado por uma angústia que tolhe o sopro da liberdade, Mandela é um daqueles homens que surge refundando a ação criativa da esperança concreta, “diurna”, isto é, política porque pressupõe a pluralidade humana, a ideia de que para se viver é necessário, primeiro, poder viver. Nestes sentido, Mandela é um mandatário de um novo “ethos” axial dos tempos futuros, exprimindo a ideia de “Humanidade” sem mais. Como um relâmpago na noite da história.
Silvério Rocha-Cunha (aqui)
Anunciam a tua partida
Deste pulsar de vida
Mas não partes
Obrigado…
Livre, forçado
Nunca antes te dobraste
Obrigado…
Se há prisão e morte,
Perpétua a prisão
Para a morte!
Não,
Nem para a morte
Tal prisão!
José Rodrigues Dias, (aqui)
2013-06-11