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Algo está a acontecer-nos e não sabemos o que é (1)

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Distribuição de sopa e comida quente na cidade do Porto (2013)

Somos injustos com os nossos antepassados, mesmo aqueles que viveram num passado próximo. Detentores de informações e de interpretações disponíveis hoje sobre os contextos em que eles viveram, é-nos difícil entender porque não viram as grandes tempestades de que foram contemporâneos, porque não souberam interpretar os factos que presenciavam, que aos nossos olhos surgem como inequívocos sinais do que aí vinha. Mas o sinal, o indício até, só o são para quem lhes dá significado, e para muitos “sinais” o sentido só muito mais tarde parece óbvio. Os inúmeros sinais como os apitos iguais aos dos árbitros que se ouvem nas bancadas dos estádios não fazem sentido para os jogadores, que nem sequer os ouvem, afogados como estão esses apitos no bruá da multidão. Assim se passam também as coisas com os inúmeros pequenos factos que enxameiam na nossa realidade actual, e com os sinais dos “whistleblowers”, os lançadores de alerta: ou não os ouvimos, ou não ousamos acreditar no seu significado. Verdades demasiado incómodas.

1. Minúsculos factos do Portugal em que (aparentemente) vivemos;

- A mortalidade infantil aumentou (pela primeira vez desde há décadas). Este foi um dos indícios que permitiu a O. Todd, em 1979, prever a aproximação do colapso da URSS/Rússia.
- A sobremortalidade dos idosos aumentou (alguma parte do aumento demasiado rapidamente atribuída ao “calor” do verão); Portugal é o país da Europa ocidental onde mais se morre de frio (entre idosos sobretudo);
- Inquéritos sobre o acesso ao sistema de saúde mostram que os mais pobres (e de novo os mais velhos, que cumulam com a velhice os baixíssimos rendimentos e as maiores necessidades de cuidados), estão a renunciar às consultas e aos remédios. Vem aí uma vaga de sobremortalidade não climatérica.
- O número de casos assinalados (queixas) de idosos por causa de maus tratos por parte de familiares (filhos, netos), duplicou em dois anos; a violência dos pobres contra os pobres, dos mais próximos contra os mais próximos. A sociedade do esmagamento dos mais fracos, ensinada pela casta política, traduzida em pancada nos avôs. 
- O desemprego atingiu máximos históricos, taxa oficial (inscritos) de cerca de 17%, na realidade provavelmente (e sem incluir sub-emprego) acima dos 20%;
- Dos 800.000 desempregados “oficiais”, mais de metade não aufere qualquer subsídio; e não se sabe como sobrevivem;
- Os estudos mostram duas coisas: (i) uma grande parte dos que agora perdem o emprego nunca mais encontrarão qualquer outro, e (ii) mesmo que haja crescimento (a grande miragem), o teor em empregos desse crescimento pode ser muito fraco (ou seja poderá haver crescimento sem criação de emprego em número significativo): não há perspectivas de futuro.
- No contexto da Europa actual e também do conjunto dos países desenvolvidos, o crescimento não voltará. 
- Os que ainda têm um emprego vêem as suas condições de trabalho agravar-se e não só do ponto de vista das remunerações: chantagem psicológica, pressões e assédio são constantes;
- Assinalam-se todos os dias crianças com fome nas escolas, através de todo o país, e é provável que nem todos os casos são detectados;
- Sopa dos pobres e caridades têm afluência recorde, e só não vê pessoas a vasculhar os caixotes do lixo em busca de comida quem não abre os olhos;
- A prevalência da violência doméstica disparou: os Portugueses e as Portuguesas batem-se, ou até, matam-se entre si no interior das famílias;
- O número de suicídios aumentou fortemente (@s Portugues@s matam-se mais frequentemente);
- O sistema judicial está à beira da ruptura; pessoal e meios são amputados, e as pressões da casta política sobre o poder judicial aumentam e paralisam-no;
- O sistema de educação é submetido a um regime de excepção: (i) humilham-se os professores dos nossos filhos, dezenas de milhares são lançados para o desemprego (até há pouco sem direito ao subsídio normal), obrigam-se professores com décadas de ensino a esperar, ano após ano, uma eventual colocação, sob pretexto de “avaliação” submetem-se a exames vexatórios, concebidos por “especialistas” de 20 e poucos anos chorudamente contratados entre as juventudes partidárias;
- A casta política preserva ciosamente os seus privilégios, escusa-se aos impostos, e defende as subvenções vitalícias para lá do limite da indecência;
- Favorece-se ostensivamente o subsídio ao ensino privado e aos seus negócios ao mesmo tempo que se retiram meios ao ensino público;
- A taxa de entrada no ensino superior dos alunos que concluem o secundário baixou;
- Assinalam-se numerosos casos de desistência a meio dos cursos;
- A falta de pagamento das propinas (aumentadas) alastra acarretando expulsões e falta de recursos para os estabelecimentos;
- Os cortes nos orçamentos das universidades e politécnicos suscitam protestos dos responsáveis, moles e platónicos lamentos do CRUP, depressivas lamentações deste ou daquele reitor e tudo continua como se não fosse nada;
- As universidades, prisioneiras do garrote orçamental, despedem pessoal docente (e não só).
- Enquanto a retórica era a da avaliação da qualidade (que podia e devia ser leal e ter consequências transparentes), despedem-se “primeiro os convidados”, como dizia um responsável, “porque é mais fácil”. Podiam ser muito bons, ou até os melhores: azar, têm vínculo frágil e passam em primeiro pela guilhotina; Segundo uma expressão tornada canónica: “que se lixe a qualidade”;
- Como esses despedimentos não serão suficientes, fazem-se inventários dos docentes com nomeação provisória e dificulta-se os processos de nomeação definitiva, para reservar a facilidade de não renovação dos contratos.
- O ambiente de angústia e de medo, de desconfiança nos colegas e na instituição que se vive hoje nas universidades portuguesas não tem equivalente no passado.
E ainda faltaria dar uma listagem avulsa do que ocorre no sistema político e no domínio da acção política, onde as coisas mais inquietantes se multiplicam (M. Soares, que conserva uma lucidez que a sua idade cronológica não desmente, fala de regresso “do fascismo”). Mas depois veremos esta lista. 
Estes minúsculos (!) factos pecam, como qualquer leitor atento logo vê, por defeito: a lista é muito incompleta, e inclui apenas aqueles que de imediato vêm ao espírito de qualquer cidadão algo informado.
A pergunta que o antropólogo não pode evitar, é a seguinte: factos, incidentes, “medidas”, serão todas estas coisas sinais? Indícios de que algo nos está a acontecer? E se sim: o que é que nos está a acontecer?

2. Acções, reacções (continua)…


José Rodrigues dos Santos, 

Antropólogo, CIDEHUS Universidade de Évora e Academia Militar
Évora, Novembro de 2013 (enviado por mail)

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