De factoÉvora tem uma história terrível no tocante a antagonismos ferozes e ódios políticos. Recordemos o que se passou na segunda metade do século XIX, com maior incidência no período que mediou entre 1878 e 1900, no qual vigorou em Portugal um sistema político, chamado de rotativismo e que decalcado do sistema britânico assegurava a posse alternada do exercício do governo aos dois grandes partidos de então: o Partido Regenerador, de centro-direita e o Partido Progressista ou o Partido Histórico, que agrupava o centro-esquerda. De fora ficavam o Partido Republicano Português e o Partido Socialista Português, hostis à Monarquia e tidos como forças de protesto e de reduzida expressão parlamentar.
No plano regional e local as coisas acabavam por funcionar da mesma maneira, dado que o partido que subia ao poder desde logo organizava eleições para substituir os anteriores responsáveis por gentes da sua confiança. Ou seja, não ascendia ao topo da administração local quem ganhava as eleições mas sim quem as organizava. O governador civil era designado pelo governo mas as Câmaras municipais eram eleitas pelos que tinham direito a voto.
A alternância garantida não significava porém que os mandatos pudessem ser cumpridos até ao fim porque, quer uns quer outros, empenhavam-se em recuperar por todos os meios o poder quando dele haviam sido desalojados. O antagonismo era feroz e o combate processava-se não só no Parlamento mas também nas cidades importantes do país.
Foi neste contexto que Évora conheceu a sua divisão em dois grupos (tal como agora) e outras tantas áreas de influência, numa acesa rivalidade de bairros. Uma zona da cidade pertencia ao chamado grupo dos Bugalhões, a outra aos grupo dos Farrobistas. Raros são os eborenses de hoje que conhecem a estória que chegou até mim por volta dos meus dez anos que conheci do através do meu tio-avô, e que uma década mais tarde vi relatada pelo escritor Antunes da Silva no seu livro “Alentejo é Sangue”– crónicas e narrativas, publicado em 1966 pela Portugália Editora.
Para não retirar o prazer de seguir a estória pela talentosa pena de Antunes da Silva, reproduzo aqui parte do texto alusivo aos Bugalhões e Farrobistas, que o escritor colocou na boca do barbeiro Rasga em narração à rapaziada do seu tempo, enquanto batucava a tesoura no pente:«Da Porta Nova ao Buraco dos “Crujais”, abrangendo os Penedos, as Portas da Alagoa, Portas de Avis, passando pela Rua de Outubro era terra de bugalhões. Das Portas de Moura, abrangendo o Largo do Paraíso, Rua de Machede, Largo do Senhor da Pobreza, Chafariz d’ El Rei, etc., era o terreno amado dos farrobistas».
«As luzes de gás que se acendiam na terra dos bugalhões não eram as mesmas que se acendiam na terra dos farrobistas. Se de um lado as luzes eram azuis, do outro para se diferençarem eram verdes. Se os bugalhões usavam polainas, os farrobistas usavam cacetes. Se os farrobistas comiam carne de porco, os bugalhões comiam carne de vaca. Tanto isto é verdade que, nesse tempo, o forasteiro que quisesse jantar à sua vontade, tinha de engolir o caldo verde na terra dos bugalhões e provar os lombos grelhados nos domínios dos farrobistas.»
«Ora acontecia que nos arraiais dos bugalhões se encontrava a Câmara, as Finanças, o banco, o maior armazém de mercearias e os Correios». Eram os intermediários que possuíam salvo-condutos, negociados entre as ambas as portas, que se encarregavam de fazer esses serviços.«E ai, daquele que transgredisse essas leis tradicionais : havia guerra brava. Além de sovarem severamente o atrevido, ajustavam combates». O “prisioneiro”, era deixado ao abandono no Buraco dos “Crujais”, terra de ninguém, normalmente em ceroulas, de olhos vendados e mãos atadas. E enquanto se procurava desenvencilhar destes embaraços e alcançar o campo dos seus, dava-se início ao combate.
«Saídas das fundas, saraivadas de pedras, pedrinhas e pedretas choviam de todos os lados, ricocheteando nas pedras da velha Casa Pia, partindo as lâmpadas, penetrando pelas janelas de um velho convento abandonado. Havia sempre feridos que se iam curar ao Hospital e os grupos rivais só debandavam quando aparecia a guarda montada». Mas ainda assim na retirada atabalhoada ainda se podiam ouvir as chufas : «Abaixo os bugalhões! Abaixo os talassas». Da outra banda respondiam, furiosos : «Abaixo os farrobistas selvagens! Abaixo os que estão abaixo de cães ».
Era a luta do poder pelo poder, estimulada e alimentada pelos caciques locais. Não os preocupava o estado de coisas na cidade cujo estatuto de quarta cidade do Reino, depois de já ter sido segunda, se ia esboroando e ruindo. Nada, a luta partidária e a avidez pela ocupação do poleiro eram as suas únicas preocupações.
À distância de cerca de 130 anos não é difícil de descortinarmos estar perante um novo episódio entre Bugalhões e Farrobistas, representados agora por comunistas e socialistas, os primeiros com sede na Rua de Avis e os outros domiciliados na Travessa da Alegria, Ambos foram durante os últimos 37 anos (e o PS ainda ocupa) os únicos ocupantes do antigo Palácio dos Condes de Sortelha, o emblemático edifício da Praça do Sertório, símbolo da administração local. A recente disputa pela melhor localização das sedes de campanha foi de um primarismo grotesco e fez ecoar na minha memória, em toda a sua dimensão, esses antigos tempos.
Hoje, o confronto é marcado essencialmente pelo valor da dívida do erário municipal cujo valor ronda os 75 milhões de euros e foi contraída por ambos os partidos, em períodos de tempo diferentes e graus de responsabilidade também diversos, durante os trinta e sete anos em que detiveram o ceptro camarário. Mas nenhum quer assumir culpas no cartório ainda que o PS diga que quer “fazer melhor”, aceitando implícita mas timidamente (a conjuntura a isso o obriga) o descalabro da tesouraria nos últimos seis anos e os comunistas reclamem “confiança” porque, em sua opinião, durante o último quartel de século passado, Évora, sob o seu domínio, viveu o período mais brilhante da sua história, sendo a sua gestão isenta de erros e de favoritismos, mercê da liderança de dirigentes impolutos e exemplares (PCP dixit).
Claro que o PS contesta esta visão idílica e maníqueista da realidade (só possível por cegueira ideológica) quer no seu jornal de campanha e nos órgãos de comunicação citadinos, quer nas redes sociais ou nos “blogs” locais, a funcionarem estes actualmente como as principais arenas da refrega. Aqui há porrada verbal que ferve. Todas as armas servem para apoucar, rebaixar e desdenhar o adversário: mentiras, meias-verdades, insultos, ataques pessoais grosseiros e aviltantes, invenções e atoardas do mais baixo nível e calibre. A coberto do mais completo anonimato, lançam-se insinuações abjectas, acusações sem provas, enlameiam-se instituições e pessoas sem o mínimo fundamento, num espectáculo triste, confrangedor e deprimente. Traidores ao espírito de Abril, forças ao serviço do grande capital nacional e estrangeiro, berram uns; estalinistas e vendidos ao comunismo internacional, clamam outros.
Nesta tarefa participam as respectivas falanges de apoio constituídas por funcionários, acólitos de serviço, coladores de cartazes, veteranos dos pleitos sindicais e das lutas estudantis, activistas de boa e má nota, manipuladores de ontem e de hoje, vendedores de banha da cobra e videntes de pechisbeque, antigos meloeiros, ciclistas e equilibristas, cabeçudos e zé-pereiras, que têm a sua sobrevivência dependente da vitória de uma de outra banda esfalfando-se numa peleja onde tudo é permitido e o motivo pode ser o mais fútil, o mais tosco, o mais pindérico, o mais alarve.
São os novos bugalhões e farrobistas, divididos como antanho pelo ódio, e lutando sem escrúpulos nem pudor pela manutenção ou reconquista do poder. No tocante ao avançar de soluções realistas, interessantes, exequíveis e mobilizadoras para fazer sair a cidade e o concelho da situação catastrófica em que se encontram, é o silêncio completo. Na apresentação de propostas sérias e estratégias para vencer a crise e atrair os votos dos não militantes, afinal aqueles que decidirão em última análise o resultado final, importantíssimo para o futuro da cidade e seu termo, parecem, pois, não estar interessados. Apenas projectos vagos e nebulosos que são acolhidos com indiferença pela maioria do eleitorado.
Não será para admirar que a abstenção venha a atingir números dilatados. Com novos bugalhões e farrobistas divorciados dos interesses da população, é natural que esta lhes venha a pagar na mesma moeda. E até mesmo nos representantes dos antigos “intermediários” que viabilizavam o acesso à “domus municipalis” e agora poderão ser decisivos, qualquer que seja o vencedor, para a constituição de acordos para garantir a sua governabilidade quando estiverem em jogo as grandes questões orçamentais e de desenvolvimento, não são detectáveis vontades para grandes cometimentos ou iniciativas.
Com o PSD confinado ao diletantismo do seu cabeça de cartaz, só do BE têm saído algumas (poucas) ideias interessantes. Mas ambos vão-se deixando enredar no jogo dos novos bugalhões e farrobistas e parecem conformados com o futuro papel que os outros lhe reservam: os primeiros preparados para o seu continuado papel de “muletas” de ocasião e felizes se não perderem eleitorado num contexto nacional que lhes é extremamente adverso; os outros satisfeitos se chamados a colaborar minimamente na grande gestão da esquerda apesar de terem sido apelidados de atiradores nos próprios pés e embandeirando em arco, com uma aguardada subida na sua percentagem eleitoral, alicerçada na sua maioria na colheita dos votos de protesto.
Será que não há mesmo volta a dar aos partidos políticos da nossa terra? E uma pergunta começa a queimar os lábios de muitos eborenses: por quantos mais anos estará a cidade, para sua e nossa desgraça, condenada a ficar refém das lutas fratricidas e dos ódios tribais entre socialistas e comunistas? Ou seja parafraseando, com todo propósito, o filósofo e orador Marco Túlio Cícero interpelando, em pleno senado romano, Sérgio Catilina, questor que procurava chegar ao poder por todos os meios:«Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? («Quosque tandem abutere Catilina patientia nostra?») Por quanto tempo este teu rancor ainda nos enganará? («Quandiam etiam furor iste tuus nos eludet?»). Sim, por quanto tempo ainda, oligarquias partidárias da nossa cidade?
José Frota (via email)