Quando escrevi estas linhas num comentário, e por ser apenas um comentário, não fui mais longe do que o enunciado dum desabafo. O Acincotons "puxou" o comentário para "post", e deu-lhe um relevo que me incita a explicar o porquê dessa afirmação.
Primeiro, ao invés do que certos "comentaristas" vão dizendo, penso que os eborenses nascidos aqui ou não, não são piores que quaisquer outra população; também não serão melhores, e muito esperto quem pudesse demonstrar o contrário.
O senso comum costuma dizer que "são as pessoas que fazem" (a cidade, a universidade, qualquer instituição). Pretendo que a recíproca é mais decisiva: é a instituição que faz as pessoas, a cidade que faz os seus cidadãos (e não "cidadões" como o inenarrável Nabil I repetia na TV), a universidade que forja as pessoas que nela entram, e faz delas jogadores conformes ás regras do tabuleiro, ou as elimina.
Évora é uma cidade com uma história terrível. Os avós da minha avó, falecida em 1974 com quase cem anos ainda conheceram a Inquisição. E a minha avó foi criada com a memória viva dos terrores que lhe estavam associados ("não cortes as unhas nem o cabelo à sexta-feira, filho, que isso são os Judeus": teria eu 7, talvez 8 anos?). O início do século XX desenvolveu em Évora um republicanismo popular, anticlerical, libertário. O meu avô aprendeu a ler com as "escolas republicanas" e terá presenciado (dizia ele) ou participado (desconfio eu) na queima de alguma igreja nos seus anos de jovem adulto (14-15 anos, ainda não havia adolescentes). Mas esse republicanismo foi severamente perseguido pelo "Estado Novo" e na minha juventude o que restava por aí eram uns fragmentos de uma comunidade de ideias que fora décadas antes vigorosa. Fechados num gueto, sem possibilidade de congregar-se nem de exprimir-se, esses republicanos perderam toda e qualquer influência na vida colectiva pública eborense.
Évora, cidade-ferrolho militar, policial e administrativo do Sul, foi retornando à sua natureza mais antiga de baluarte da Igreja e do Estado central. Com dois regimentos de grande dimensão (Artilharia 1 e Infantaria 16), com quartéis de GNR e das polícias, pejada de conventos e controlada por um clero ultra reaccionário, verdadeiro porta-voz da propaganda do regime, Évora empregava sobretudo os administrativos cuja salvação dependia de se manterem calados pelo menos, ou de se alistarem na Legião Portuguesa, essa infâmia, ou em quejandas oficinas.
Entre o cotim do Exército, o cotim da GNR e as sinistras sotainas do clero, restava aos mangas de alpaca do regime uma vida de bisbilhotice, de denúnica (milhares de cartas de denúncia... anónimas, claro), de resignação.
Évora, cidade ferrolho do deserto, na qual não era o comandante do forte que escrutava a chegada dos Tártaros, mas a meia-dúzia de bárbaros do interior que escrutava a poeira do deserto, à espera do Suão que varresse esse pesadelo.
Évora, cidade onde as coisas eram mesmo como disse o Vergílio, ainda o vejo passar de cabeça inclinada, livro debaixo do braço, como se levasse um peso de toneladas nos ombros, e eram piores do que ele disse. Uma classe de comerciantes servis, ignorantes, uma classe de proprietários de porcos orgulhosos de cheirar a pocilga, escumalha de casca grossa que acreditava na eternidade do seu poder por promessa divina e contava sobretudo com as coronhas das espingardas que o regime, graciosamente, lhes dispensava sempre que fosse preciso. Catarina.
Évora, cidade de cultura? Deixem-me rir. Cidade em que o ódio à cultura estava entranhado nas gretas das ruas, e nem era preciso puxar pela pistola, porque ninguém se atrevia a pensar quanto mais falar de cultura. Ah, as heranças! Nosso, eborense, com direito a uma calçada empinada, o Cardeal das Amas, Grande Inquisidor obcecado com a Ordem, fundador ao que se conta da Universidade de Évora, ou seria o Colégio dos Jesuitas, concebido não como as universidades dos séculso anteriores (Bolonha, Paris, Oxford) e as do seu tempo como lugares de livre saber, mas como máquina de agit-prop, formadora de enviados especiais às almas dos outros povos, cruz numa mão, espada na outra. Universidade desde logo tolhida pela missão de aprender a convencer, não de saber, para quem duvidar era já pecar. Herança, Cardeal. Não vou entrar em mais pormenores, que os há e bem úteis de recordar, mas aqui não cabem.
Quem se lembra do fim dos anos 50, Europa em ebulição, Sarte, Camus, só dois nomes perigosos que vêm assim à primeira, em Évora, quem se lembra do Joaquim Bravo, do Álvaro Lapa, do Joaquim Serrano, este mais jovem, e da clandestinidade a que o interesse pela cultura, pelas leituras, pelas artes os votavam? Sim, havia alguns nomes, o Espanca solitário e bem acima da ralé que o observava nos salões, e a mão-cheia de notáveis suficientes do regime, estilo B. Gromicho, que se davam ares de terem vistas mais largas.
Mas a população? Évora nunca foi eles, era um mundo à parte, ou melhor de baixo, de gente iletrada ou quase, uma cidade sufocada por uma pseudo-elite provinciana, conservadora não, reaccionária, a olhar para trás e a dar-se ares de viver na eternidade, ainda ela.
Se tivesse havido eleições nessa cidade concentracionária, essa gentinha satisfeita poderia até ter ganho sem previamente encher as urnas com a prudência que se impunha: amanuenses, militares, padres, comerciantes obtusos eram capazes de votar como devia ser. Mas não havia eleições.
Ao fio dos anos 60 os campos alentejanos vão-se despejando das gentes rurais, uma parte para a estranja, a outra para cidades como Évora. Rural e poeirenta, Évora ruraliza-se ainda mais com a chegada des imigrantes de dentro. Imigrantes mais rurais, quer dizer menos instruídos, com taxas de anafabetismo que ainda hoje nos envergonham (ou deviam), obra cultural, essa sim, do Estado Novo. Ler é já estar em perigo.
Mas esses rurais eram também o suporte social do Partido Comunista. Se este pretende por vezes ter dado à liberdade os únicos verdadeiros combatentes (o que é obviamente falso), o facto é que foi ele a única força que acompanhou durante décadas a vida de quase escravatura que imperava nos Alentejos profundos. Montes, aldeias e vilas, tornaram-se naturalmente nos bastiões político-ideológicos do PC e logo em bastiões eleitorais quando finalmente houve eleições livres. Ao invés do que se passava no país como um todo, em que apesar das euforias de Abril o PC nunca recolheu muito mais de 20% dos votos, no Alentejo as autarquias foram entregues aos comunistas, quase sem partilha: todas e com maiorias absolutas.
Ao instalarem-se em Évora, os rurais alentejanos oriundos das autarquias vermelhas iriam sem grande surpresa fazer pender a balança eleitoral a favor do PC. Bairros clandestinos geridos com astúcia (legalizar, negociar, ajudar, mas não chocar), utilização judiciosa dos fundos comunitários (a partir de 86 ) destinados às infraestruturas básicas (águas, saneamento, melhoria das condições de habitação, vias, etc.), deram à "base eleitoral instalada" uma solidez semelhante, na duração, ao que se conhecia do antigo regime. Não importa que água corrente, electricidade e casas-de-banho tenham sido construídas pelos outros partidos noutras partes do país. Aqui foi assim, ponto.
A cultura nunca foi a preocupação dessa nova população, como não o era da antiga. Apesar dos 400.000 contos gastos na "cultura" nos dois últimos anos do último mandato comunista, a cultura não fez a diferença. Estava provado, contra o que poderíamos esperar e até desejar, que os incentivos e os gastos a fundo perdido na cultura não são – aqui! - eleitoralmente remuneradores. Pelo contrário. Numa cidade profundamente reaccionária (não falo da clivagem esquerda / direita sobre a qual teremos que voltar), a cultura é igual a esbanjamento, a favorecimento de parasitas, a criação e manutenção de subsidio-dependências. Um dos traços mais salientes do fechamento mental da cidade é o rancor que a população (sim, aquela mesma que aproveita e retira benefícios para adultos e para crianças) mantém contra os "artistas"; alternativos, cabeludos, vagamente ou menos vagamente suspeitos de serem drogados, porque não homossexuais, mais ou menos qualquer coisa de insuportável que cada um quiser, em todo o caso, como um comentarista genial sem querer dizia: "são uns PIMs", ou seja, são uns palhaços. E “palhaços”, é mau, claro. A profissão não foi resgatada por quem, palhaço nesse mau sentido, não brinca com coisas sérias: o poder.
Capítulo 2: A "esquerda" contra a "esquerda": uma esquizofrenia eborense.(proximamente)
José Rodrigues dos Santos,
Évora 23 de Agosto de 2013