Já que se aproximam as eleições autárquicas, e uma vez que alguns comentários no acincotons se têm referido a esta ou aquela posição que aqui terá sido expressa, talvez seja bom esclarecer que muitas das coisas aqui publicadas não têm a ver com a opinião dos autores do blogue, mas são notícias de outros locais que destacamos a fim de provocar algum debate na opinião publica. Ao darmos visibilidade a essas posições não quer dizer que com elas concordemos ou não: são cartas de jogo que estão em cima da mesa e que achamos que devem ser consideradas e não escondidas debaixo da mesa.
No entanto, outras vezes damos também aqui as nossas opiniões. Sendo este blogue um espaço de partilha, da responsabilidade de um conjunto de pessoas, todas elas com as suas opiniões próprias e individuais, estranho era que assim não fosse.
Dito isto gostaria de dar a minha opinião pessoal sobre as próximas autárquicas, começando por dizer que não vou votar. E, se não o faço, isso não decorre de uma menor atenção ao debate político ou a uma menor participação no espaço público e considero, aliás, que quem queira votar não deve ter quaisquer constrangimentos. É porque, na minha opinião, ainda não compreenderam na totalidade a dimensão do “polvo partidário” que constitui a nossa vida política e o sistema de partidos em Portugal.
A minha posição, há muito consolidada, é esta: não voto porque não quero validar um sistema que está corrompido à nascença e que consistiu, logo após o 25 de Abril de 1974, no confisco do espaço público por parte dos partidos políticos do sistema, tonando-o numa verdadeira partidocracia.
Ocupando – em muitos casos, houve mesmo uma espécie de assalto - o aparelho de Estado no pós-25 de Abril souberam moldar a seu favor todo o espaço de intervenção público e político e tornarem-se verdadeiras lapas incrustadas na sociedade portuguesa que, por mais que as sacudamos, delas não nos conseguimos livrar.
Monopolizaram a representação política e o espaço da cidadania, inscrevendo esse monopólio na lei, como na altura – saídos da ditadura! – outros (ou os mesmos porque no reino dos partidos não há outros – é muito mais o que os une do que o que os distingue) inscreveram a unicidade sindical no capítulo das liberdades e garantias dos trabalhadores (ó ironia!) e dividiram entre si “o bolo”, conforme as posses e os meios de cada um para o abocanhar.
A política, e os negócios a ela associados, tomaram conta do Estado no pós 25 de Abril, confundindo-se com ele e quase não deixando nenhuma margem para a expressão da cidadania.
São as listas fechadas e meramente partidárias (as listas de independentes para as autárquicas foram “tiradas” a sete ferros e ainda sofrem de todo o tipo de limitações), representando os partidos e não os cidadãos; são as mordomias salariais e de estatuto; as reformas chorudas e vitalícias que criaram para si; os subsídios em dinheiro que todos pagamos para cada um destes partidos, seja para o seu funcionamento normal, seja por votos obtidos no momento das eleições – mas deste “bolo” estão excluídos os partidos que não consigam representação parlamentar. Por isso é que os que lá estão tentam, por todos os meios, restringir a capacidade de outros grupos terem acesso ao Parlamento, legislando e tentando legislar nesse sentido
O sistema partidário – mesmo quando se baseia em partidos de eleitores como o PS, o PSD ou o CDS, ou num partido ideológico como é o PCP ou num partido de causas como é o BE – é sempre o mesmo e tem como principal objectivo a sua auto-preservação e auto-reprodução.
O sistema de funcionários e de pessoas que fazem da política (enquanto eleitos) a sua única ou principal profissão, durante décadas, já esqueceu quaisquer objectivos de fundo e limita-se a gerir o dia a dia nos cálculos do deve e haver dos lugares, da influência que pode ou não ter e das “benesses” que possa ou não obter – sejam estas financeiras, de oportunidade ou de colocação dos seus filiados mais activos nas estruturas do Estado ou das empresas que dele dependêm..
A institucionalização dos partidos, como de qualquer outra entidade, significa que só a estrutura conta e a defesa das suas muralhas, e dos interesses de quem está lá dentro, é o seu único factor diferenciador. Cada um tenta preservar o seu espaço para que ele não seja engolido pelo “parceiro” do lado. A auto-defesa, sobretudo dos que estão mais frágeis, tornou-se numa verdadeira obrigação de sobrevivência.
Chegados aqui pode-se perguntar: o poder local não poderia ser diferente? Podia. Mas não é. Os partidos trouxeram para o nível local todos os seus vícios de funcionamento ao nível central – até porque os partidos políticos em Portugal, ao contrário de outros países, nasceram ou cresceram fortemente a partir do aparelho de estado ou autárquico e só depois se consolidaram a nível local. As listas de independentes podem ser uma corrente de ar puro, mas ainda é cedo para saber. Há experiências muito diferentes e ainda não existe qualquer balanço seguro.
Mas durante estes anos não houve obra feita? Claro que houve. O ponto de partida era muito baixo e o pós-25 de Abril mobilizou muitas vontades ao nível local, mas depressa a partidarização e a partidarite trouxeram para os pequenos concelhos e freguesias (com excepções, é claro) não o traço que deveria unir os cidadãos em torno dos seus problemas locais concretos, mas sim o clima de divisão proporcionado pela clubite e pelas cores partidárias – ainda que, nalguns casos, isso tenha correspondido a obra que só foi possível com os muitos milhões de investimento feitos com financiamento comunitário - que está praticamente no fim para as autarquias, segundo fontes do governo, que querem "desviar" os fundos comunitários para as empresas e para a formação profissional.
Ganhar o A ou o B, aqui ou ali, parece-me perfeitamente indiferente, descontando as amizades pessoais, de grupo, ou interesses e a personalidade de cada um. Vai ser tudo gente do sistema, quer ganhe este ou aquele e apesar de todos eles dizerem que são diferentes do parceiro do lado.
Gerem o existente e os seus sonhos juntos contêm-se dentro da gestão do dia-a-dia: aqui com algumas nuances, ali com outras.
Por isso, também, me parece tão irrelevante se um candidato com três ou vinte ou quinhentos mandatos pode ou não recandidatar-se. É tudo fogo de vista e estas leis, como tantas outras, são apenas para fazer de conta: entretêm-se nessas ninharias os deputados e os partidos que nos custam os olhos da cara e fingem que tudo isso é feito para nosso bem, contra a corrupção ou o que for. É como se no covil das raposas se legislasse sobre a protecção aos galinheiros.
Cada vez mais a política se resume a um espectáculo em que os seus agentes são os actores, que representam papéis de ficção ou de pura comédia e que, no fim da peça, dividem o dinheiro e partilham a ceia entre si. O povo, as pessoas em geral, são o público. Servem para pagar a entrada, a manutenção do teatro, os salários dos actores e o único papel que lhe está reservado é o poderem aplaudir. Se, caso também previsto, assobiarem ou patearem, lá estão as forças de intervenção para conterem os protestos logo no início.
Que interessa mais uma lei para este lado ou para aquele? Ou mais um voto para um ou para o outro se o sistema da política está todo ele prédeterminado?
Talvez correr com eles todos fosse a solução. E, aqueles a quem apenas está reservado aplaudir, fazerem um novo 25 de Abril, mas sem deixar que as lapas se inscrutem, de novo, no espaço público, político e social, lixando sempre o mexilhão.