Uma vez que a crónica vai para o ar no dia de Todos-os-Santos, ocorreu-me que aqui estaria uma palavra também já caída em certos usos no domínio da metáfora.
Os preceitos canónicos dizem que, de morto a santo, têm de decorrer alguns anos, se bem que o prazo tenha vindo a encolher com a velocidade furiosa pela qual os tempos contemporâneos se pautam e, em menos de um ai, vi gente que foi da televisão ao panteão.
Fora ou dentro da religião, o santo é e será sempre sinónimo de puro, perfeito, incorruptível, verdadeiro, autêntico, sincero, imaculado, impecável, perfeito, e por aí fora. E quer-me também parecer que, ou se acumulam os adjectivos ou, tenham paciência (de santo até!) e é-se apenas uma meia-dose de santo. Bem ou mal servida, vai depender do tempo que convivamos com tal personagem e percebamos se essa parte não é compensada por outra, a que cai no domínio oposto, e que talvez seja a dos endemoninhados.
Quando o termo se transforma em metáfora vai por aí fora a dessacralizar-se até à banalidade e, por vezes, ganha até o carinhoso diminutivo. E não se iludam porque quem chama outro ou outra de santo ou santinha é porque o milagre – com muitas aspas – foi em seu benefício próprio e não para bem da humanidade. Mais do que virtudes heroicas em geral, o santinho fez-me foi um grande favor.
Claro que também aplicamos o termo às crianças, sem modos interesseiros em princípio. Mas até aí quem de facto sai a lucrar parece ser quem tem de conviver com esse tipo de cachopos. E aliás, quando usado com ironia, chamar a um adulto santinho ou santinha é um tudo nada insultuoso. Sendo que, no feminino, sobe, em certas circunstâncias, uns escalões na régua do escárnio e maldizer
Beatificação natural, diria, é a que no entanto sucede quando os que nos são próximos e de quem gostamos mesmo muito partem para sempre. Que, enfim, é muito tempo mas onde todos acabaremos por chegar. É a beatificação da memória selectiva, a que é filtrada pelo coração que é a parte do corpo onde guardamos todas as emoções e onde também guardamos os corações que pararam. Para sempre. Sem ironias e com a dor que nos faz às vezes esquecer que afinal é tudo só uma metáfora, isso do lugar que é o coração.
Até para a semana.
Cláudia Sousa Pereira (crónica na radio diana)