Está marcada para as 19 horas de hoje a inauguração da edição de 2016 da Feira de São João, em Évora. Uma feira antiga, com uma grande tradição, que conseguiu sobreviver aos tempos e aos homens que a foram vivendo, e cujo programa pode ser consultado aqui. No romance "Aparição", centrado em Évora, Vergilio Ferreira - cujo 1º centenário de nascimento se comemora este ano sem que a CME quase se tivesse apercebido da data (a não ser apoiando um Congresso organizado pela Universidade de Évora) -, retrata assim a velhinha feira de São João (através de Rui Arimateia)
A FEIRA DE SÃO JOÃO NA «APARIÇÃO» DE VERGÍLIO FERREIRA
"A feira abriu com grande excitação. Todo o Rossio se iluminou de festa com fieiras de barracas, carrocéis, circos, stands de carros e máquinas agrícolas, botequins, tendas de doçaria, de fotocómico, tômbolas, jogos de argolinha, aparelhos de buena-dicha com variantes de passarinhos que tiram o papel da sorte, tiro ao alvo, aparelhos para demonstração de forças, solitários vendedores de água com uma bilha e um copo ao lado, vendedores de mantas, de escadas, de cestos – sob um céu duro de alto-falantes e poeira e vibrações luminosas. Noite de S. João, noite cálida de bruxas e de sonhos. Para lá da mesa em que escrevo, para lá da janela aberta, clarões de fogueiras abrem-se de descantes que irradiam pelos céus. Há danças, entre as estrelas, de gente que se dá as mãos… A montanha arfa pesadamente dos grandes calores do dia. Eu ouço e comovo-me. De vez em quando o homem lembra-se de clamar a sua vida contra a noite, contra as sombras. As fogueiras são os fachos dessa vitória efémera. Mas é belo que se discuta até ao fim o derradeiro triunfo do silêncio. Eis Évora discutindo-o também aos meus olhos erradios e doridos. Nesta praça de loucura ignoro a loucura. O que enfrenta o meu cansaço, o que afoga a minha interrogação é esta fácil desautorização da morte. Nós, os homens das contas complexas de quem aprendeu mais do que as quatro operações, das bibliotecas de catacumbas de quem ousou mais do que o a b c, de quem arriscou as ideias e as não gastou em palavras, sabemos que a discussão se não esgota num simples voltar de costas, numa troça de desprezo, embora soberana e eficaz como a das crianças. Mas esta gente pareceu-me hoje, neste breve instante, que é viva e natural, que tem a força bravia das ervas dos baldios. E uma opressão esmaga-me como diante de uma audácia a que só nós emprestamos consciência para a tornar audaz. (…). É dia de S. Pedro?, o dia «chique»? Já não sei. A multidão ferve rodando em torno de si, como se toda a feira fosse um enorme carrocel. Mas a noite recua um pouco, as sombras começam onde já ali se não lembram.
(…) Vou no rasto desta massa de gente que alastra por toda a feira. É uma gente que sabe como a fraternidade da pele encoraja o que é da pele, os músculos, a garganta, amplia a parte mecânica de um homem: a alegria, a que é da rua, fortifica-se messe encorajamento. Um ou outro afirma-a a altos berros para que ele próprio a ouça, experimenta-a para a saber, como se experimenta um risco, atira-se a ela para que os outros verifiquem que afinal ela existe. Passo junto dos circos, há bichas de gente
a procura de bilhetes. Hei-de lá ir também. Gosto dos palhaços como de quem me põe à prova a urgência do que sinto: os palhaços recusam-me o que eu devo recusar talvez… Gosto dos trapezistas como de quem se liberta, das lantejoulas, dos dourados, como das tréguas da ilusão que não quer ser mais do que isso.
(…).
Vergílio Ferreira, APARIÇÃO, Colecção ‘Contemporânea’, Portugália Editora, 2.ª Edição, Lisboa, 1960.