Abalados pelo choque do horror, pela pena e pela compaixão pelos mortos e feridos – podíamos ser nós, podia ser eu, podiam ser os nossos amigos próximos – assistimos ao cortejo habitual das vociferações, das gesticulações, das grandes ameaças no vazio.
Todos sentimos que as polícias têm que fazer o seu trabalho, que a justiça deve poder julgar os crimes. E é porque todos o sentimos que é tão fácil gesticular – enviar a tropa, milhares de soldados que nada sabem de terrorismo urbano, bombardear meia-dúzia de posições do Estado Islâmico (EI), decretar estados de emergência – cujo efeito é, como se costuma dizer “psicológico”. Ou seja, manipulatório, porque o que falta é agir de verdade e não manipular as nossas “psicologias”. Sabemos, pelo contrário, que coisas essenciais nos escapam: praticamente todos os terroristas que cometeram os últimos atentados em França (Merah em Toulouse, Coulibaly and Co. em Janeiro contra o charlie Hebdo, e agora os de Novembro), todos, dissemos, estavam referenciados como a) terroristas, b) formados nos campos do Médio Oriente e Afeganistão para matar, e c) capazes de agir em qualquer momento. Muitos deles com fichas “S” (especiais Segurança do Estado) bem preenchidas. Faziam parte dum “viveiro” letal, onde cada morto ou preso ou desaparecido é susbstituido por dois outros. No exterior, um país como a França expõe-se a estas represálias (que é o que são os atentados) pla sua actuação no Mali (intervenção contra as milícias islamistas do Sahel, o que parece correcto, mas para salvar um governo corrupto, um exército formado e armado pela França e pelos EUA, que fugiu perante os assaltantes ou se juntou a eles). Na República Centro-Africana, intervém para “separar” as milícias “cristãs” das milícias islamistas, melhor, para apoiar as primeiras contra as segundas. No Médio Oriente, combate na Síria (com uma moleza que denuncia a falta de visão estratégica) contra um Assad que apoiam as milícias Chiitas do Hezbollah libanês e os Chiitas do Irão, os quais combatem os Sunitas do EI na Síria e no Iraque. Neste país, a França apoia o “Governo Iraquiano” Chiita, contra o EI Sunita. Ao mesmo tempo, vende (de concerto com a Alemanha) o armamento mais sofisticado do momento à Jordânia (Sunita), e sobretudo, em volumes escandalosos, à Arábia Saudita, Sunita. Esta exporta um Sunismo extremista,Wahabita, e sustenta o EI (Sunita, wahabita), com financiamento e armas. O mesmo fazem o Quatar e os Emirados A.U., governados por Sunitas extremistas. Quando a Rússia intervém, bombardeia os rebeldes anti-Assad e poupa o EI.
O EI não está portanto sozinho e abandonado. A sua barbárie sem limites, exibida com a precisa intenção de horrorizar e amedrontar, decapitações, genocídio dos Yazidis, e atentados como os de Paris, é instrumental. Mas enquanto o horror se exibe, os negócios continuam, “as usual”. O EI apoderou-se de campos e de refinarias de petróleo que continuam a produzir. Avaliam-se os rendimentos retirados desse negócio em cerca de 500 milhões de dólares por ano. Estes fundos, a par com os que foram capturados nos cerca de trinta bancos de que o EI se apoderou nas zonas conquistadas, são movimentados com toda a normalidade: pagamentos e transferências internacionais a correr “as usual”. Não foram decretadas quaisquer sanções internacionais contra esses bancos, nem quaisquer controlos sobre esses fundos. Mas quem compra o petróleo do EI? Somos nós, ele circula nos depósitos dos carros europeus, depois de ter atravessado a Síria, entrado na Turquia em contrabando (milhões de barris de… contrabando), branqueado nessa nossa querida aliada da NATO que é a “democrática” se bem que islamo-conservadora … e sunita – a Turquia, e, dizem os especialistas do mercado dos petróleos, a preços equivalentes ao terço dos preços mundiais: é só benefício.
Assim, quando jornais, televisões, rádios nos “informam” que os aviões franceses bombardearam Raca, a “capital” do EI na Síria, onde largaram umas bombas em “retaliação” – uma “resposta vigorosa”, temos o direito de desconfiar do que nos estão a fazer: manipulação intolerável. Não queremos que se utilize a mnossa emoção para acentuar a degradação dos direitos cívicos, desde a liberdade de circulação e de associação, à liberdade de expressão, e à liberdade de consciência, que a propaganda insidiosamente destrói. Temos o dever de exigir responsabilidades aos governantes europeus: vendas de armas (milhares de milhões de euros) a ditaduras terroristas, cumplicidade comercial e financeira com os circuitos do EI, intervenções desastradas para salvar regimes corruptos, jogos com os amigos dos nossos inimigos e com os inimigos dos nossos amigos, sendo os inimigos verdadeiros e os amigos todos falsos, tudo isso e o resto explica, sem justificar, o ódio ao “Ocidente” por parte dos extremistas islâmicos. Quanto ao lugar e à influência específica do Islão enquanto ideologi religiosa e política em tudo isto, e ao seu lugar no Ocidente, são questões que, por serem tão complexas, terão que ficar para mais tarde.
José Rodrigues dos Santos
Évora, 16 de Novembro de 2015.