Joaquim Palminha Silva |
IV
O José do Telhado«roubava aos ricos para dar aos pobres», e o seu esporádico património era adquirido com conhecimento de todos, sob enormes riscos. Sobretudo tinha um objectivo “moralizador” e, apesar de “criminoso”, a honestidade incontestável como assumiu a responsabilização posterior dos seus actos de ataque à propriedade alheia, fizeram dele um personagem mitológico, impossível de comparar ao malfeitor vulgar dos caminhos ou ao canalha de punhos de renda, administrador de Concelho, deputado às Cortes ou mesmo ministro do Reino!
Serra do Marão
De vez em quando, depois da acção bandoleira, deixava o seu esconderijo na Serra do Marão para ir ver a mulher e os filhos. Outras vezes dormia nos povoados que lhe eram simpáticos, e pagava a hospedagem como um príncipe. Porém, se acontecia ser surpreendido pelas autoridades, praticava sempre um acto de coragem que o celebrizava e, assim, lhe retocava aqui e ali o desenho do mito, por assim dizer.
Uma vez, em Mancelos, ao aparecer, de surpresa, à tropa que viera em massa cercar o sítio na mira de o deter, fugiu pelas traseiras da casa onde se acoitava para, mais adiante, emboscado no caminho, arcabuzar o regedor da Freguesia que o havia denunciado. Numa noite, a sua mulher acordou-o em sobressalto, avisando-o que a casa estava cercada pela tropa. José do Telhado vestiu-se com vagar, pegou no seu relógio de corrente e deu ordens a um empregado da casa para, instantes depois, ter o seu cavalo pronto a montar em determinado ponto e, abrindo uma janela, numa aparatosa cena do melhor efeito romanesco de western, saltou para pátio traseiro da casa, caindo súbito no meio da soldadesca surpreendida, perguntando-lhes: «- Que tal está a noite?». Entretanto, montou o cavalo de um salto, de bacamarte apontado: «-O primeiro que se mexer morre!»… E ninguém se mexeu… Aconteceu assim, dizem as crónicas… E eu afirmo que esta cena é espectacular (a ter sido verdadeira), como que “trabalhada” pelo realizador John Ford, a solicitar uma versão cinematográfica actualizada da aventura. Neste lance ainda sobrou tempo a José do Telhado para gritar aos atónitos soldados, num tom de salutar bonomia: «- Olé! Cá ficam uns pintos para beberem à minha saúde!», e assim deixou sobre um muro do caminho, que a tropa havia de seguir, as referidas moedas.
Numa feira em Vila Meã, após despejar a sua canada de vinho verde, viu alguns atrevidos correrem em massa para ele com ar ameaçador. Pegou no varapau, lançou-se no meio da turba esgrimindo com mestria, rachou umas cabeças e, num reflexo rápido, derrubou um lavrador que seguia na sua égua, dum salto escanchou-se na sela e partiu à desfilada, dizendo de longe, fanfarrão, tirando o chapéu braguês num gesto largo de saudação: « - Adeus, até outro dia!»… A meio caminho, desmontou e entregou a égua a um passante a caminho do arraial, pedindo-lhe para entregar o animal ao dono, acrescentando: «…E se quiser alguma coisa do José do Telhado é só mandar!».
As narrativas, urdidas com estes lances, apetrechadas com a figura garbosa e comportamento destemido do bandoleiro, criaram paulatinamente a esperança na existência do «repartidor público», ganhando raízes na “alma” da Serra e fazendo-se lenda viva. De facto José do Telhado ganhava cada vez mais fama, atrevendo-se cada vez mais a “roubar” os ricos lavradores. As proezas que se noticiavam enchiam de pavor todos aqueles que, bem instalados na vida, tinham de se deslocar pelos caminhos da Serra, enquanto os pobres de Cristo, nada temiam e, escândalo dos escândalos, até rejubilavam quando viam o José do Telhado no seu caminho.
Um comerciante do Porto, Bernardo Machado, jornadeando para Cerva, encontrou no caminho um cavaleiro bem vestido em montada arreada a preceito. Conversaram, e o comerciante confessou o seu receio de um mau encontro com o temido José do Telhado. O cavaleiro colaborava com as opiniões do homem de negócios. Decidiram comer uma refeição numa estalagem. Comeram em franca camaradagem. Por fim, o cavaleiro desconhecido despediu-se do comerciante dizendo que tinha pressa em seguir, este recomendou-lhe cautela. O cavaleiro encolheu os ombros, largando a galope. O comerciante quis pagar a conta. Pasmado, ouviu a estalajadeira dizer-lhe: «-Já está paga pelo seu amigo.»; «- Amigo? Mas nem sequer conheço o cavalheiro… Quem é ele?»; «- O Senhor José do Telhado!», comunicou a mulher sorrindo.
(continua)