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«Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia…»

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Joaquim Palminha Silva











  «Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia…»



      Gaspar Frutuoso, na sua obra Saudades da Terra (último quartel do séc. XVI), escreveu que a Província do Alentejo é a mãe do bom pão. Sabemos que a cultura do trigo, cereal por excelência produtor do pão nas terras do sul, requer grande extensão de terreno, sendo por isso o Alentejo o seu campo natural desde tempos recuados, centrando-se os principais centros produtores há pouco mais de meio século, em Beja, Elvas, Estremoz, Évora e Portalegre.


            Cultura extensiva durante muitos séculos em toda a área que abrange o actual Distrito de Évora, o percurso “mítico” do pão está ainda hoje, apesar de tanta idiotia ”turística” de importação, está bastante enraizado em vários e multifacetados aspectos da Cultura nacional e, de forma extrema e clara, nos fundamentos específicos do que podermos chamar, simplificando, traços sui generis da cultura alentejana.
            Do tradicional «cante», aos objectos de uso decorativo ou utilitário, do rifoneiro popular à prática da religiosidade cristã, o trigo e o pão fazem parte da policroma galeria de símbolos e figuras que na memória colectiva têm uma acção directa e permanente. Évora, isto é, o seu actual Distrito, teve um papel importante na produção cerealífera alentejana, de quem já Duarte Nunes de Lião (in Descrição de Portugal, cap. 34º, 1610) dizia ser o «celeiro do grande povo de Lisboa».



            Mercê do esgotamento das terras, de um redimensionamento da agricultura nacional, com origem nos imperativos dos grandes grupos económicos que lideram as estruturas políticas da União Europeia, do gradual (e talvez propositado) despovoamento do Alentejo, bem como de uma sucessiva direcção governativa que, por vezes, roçou o descarado abandono da região transtagana, a que acresce séculos de prática dum regime de propriedade (latifúndio), o “caminho” do trigo e do pão na região sul é hoje apenas referência histórica e antropológica de um saudoso passado cultural.
            As gerações mais novas pouco ou nada sabem do trigo e seus vários processos de transformação que levam ao fabrico do pão e, por inelutável influência, à formação de uma acção social específica, alimentando formas de luta de classes e implicações culturais com hierarquias distintas do contexto nacional. De resto, a Universidade de Évora nunca foi capaz de iniciar, no âmbito dos mestrados, cursos que fossem efectivos embriões de estudos consequentes e continuados. Tudo o que se consegue apurar da produção desta Academia, são umas minguadas “teses” de mestrado (mais parecidas com péssimas reportagens de jornal, escritas num português de arrepiar…) que, em boa verdade, não nos “oferecem “tese” alguma!
            Não me parece que exista, portanto, organizada e materializada, uma memória do conjunto de “saberes” milenares que envolvem a produção do pão, deste da espiga sobre a terra arável até ao pão sobre mesa. Escola de vida e de arte, de luta social, incluindo “concepções” do destino humano (religiosas e profanas), a História retrospectiva do pão alentejano está por contar! *
            Como conseguir este objectivo? Como conseguir por em prática uma solução que nos garanta a possibilidade de testar capacidades, recursos, meios técnicos e humanos sobre a História do Pão? – Fundando de raiz, e com criteriosa eficácia científica, o Museu do Pão!
            A memória histórica dos povos tem consequências inevitáveis: - As gerações dos novos que participam perante o futuro da responsabilidade dos poderes públicos, desde que o queiram, tem sempre força e meios para defender a Cultura nacional, como dever patriótico, quando esta anda esquecida ou é marginalizada.
            Porém, se o Alentejo, e com ele a cidade de Évora, não têm memória história do seu ancestral pão (nem consideram grave que tal não seja objecto de estudo sério), então nada nos garante no futuro… «o nosso pão de cada dia»!
            Alerto, pois, as instituições e os especialistas (recolhidos em Universidades ou não) para que salvem da dolorosa e horrível morte lenta parte importante da memória transtagana, fundando um digno e atraente Museu do Pão!
           
*Há paradoxos eloquentes, que dizem muito sobre a mentalidade dos dirigentes alentejanos, políticos e outros. Um organismo público de turismo, em conivência com um presidente de Câmara, encerraram um esboço de museu do artesanato, para em seu lugar abrir um absurdo “museu” do “designer” industrial… Um colecionador privado de relógios encontrou um espaço público disponível, de forma a exibir a sua colecção a que, pretensiosamente, chama “museu do relógio”! Absurdos acontecidos em Évora na última década…


Campos nas vizinhanças de Montemor-o-Novo, lavrando a terra (anos 50 do séc. XX).

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