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Joaquim Palminha Silva |
O 1º piloto do Canal do Suez?
I
José Sabino Gonçalves
Nos últimos 70 anos escreveu-se bastante sobre o Canal do Suez e, condicionalismo tradicional, a opinião pública imobilizou-se sobre a denominada “história imediata”, esquecendo ou ignorando as peripécias que surgiram um dia na aridez desértica, que então mal consentia a afirmação da vida humana. Eis que agora, mais uma vez, a imprensa nacional, referindo a inauguração (Agosto de 2015) do renovado Canal do Suez, torna a olvidar algumas “curiosidades” sobre a inauguração da primeira versão do canal no século XIX (1869). De resto, podemos compreender perfeitamente o esquecimento, pois esta obra gigantesca foi determinada pelo novo déspota do Egipto, o general Abdel Fattah al-Sisi, responsável directo pelo assassinato à queima-roupa de 800 manifestantes num só dia, e a condenação à morte de centenas de opositores… Enfim, tudo dentro da “tradição” histórica!
Livros e artigos de” revistas ilustradas” têm-se encarregado de nos elucidar, às vezes com pouco rigor, sobre a magnífica realização do engenheiro francês Ferdinand Lesseps. O canal nasceu na segunda metade do século XIX, num Egipto atulhado de interesses europeus e, naturalmente, encravando o imperialismo francês com inglês, e este com o alemão que por sua vez… e assim de seguida. Tudo anunciava uma imensa e continuada guerra…
Entre nós, o primeiro a “embarcar” no espírito da época foi o escritor Eça de Queirós. Com o entusiasmo e a ironia que caracterizam a sua prosa, debita-nos a melodia da “civilização” europeia sobre esse Médio Oriente, “bárbaro” sem remorsos e sem vergonha, num artigo nas Notas Contemporâneas e, postumamente, na obra O Egipto. Porém, em nosso entender, o autor do Primo Basílio não se apercebeu de alguns pormenores importantes. Para os apanhar teremos que ler o escritor Ferreira de Castro (in As Maravilhas Artísticas do Mundo, vol. I), pois são dele as mais fiáveis informações: - O deserto foi escavado por 120 mil trabalhadores; todos os dias se abriam sepulturas sob o olhar “zangado” dos abutres, para enterrar as vítimas da cólera, do paludismo, da febre tifoide, da disenteria, das más condições de alojamento e alimentação; segundo o Instituto Pasteur de Paris pereceram 1.394 trabalhadores egípcios e 1.314 trabalhadores franceses… a morte a forçar a igualdade?!
A 17 de Novembro de 1869, o Canal do Suez foi inaugurado com “pompa e circunstância”… Não, não estamos a fazer retórica. Eis o que nos descreve Eça de Queirós no artigo «De Porto Said a Suez», (in Notas Contemporâneas).
«Estavam ali as esquadras francesas do Levante, a esquadra italiana, os navios suecos, holandeses, alemães e russos, os yachts dos príncipes, os vapores egipcios, a frota do paxá, as fragatas espanholas, a “Aigle”, com a imperatriz, o “Mamoudeb” com o quediva, e navios com todas as amostras de realeza, desde o imperador cristianíssimo Francisco José até ao caide árabe Abd el- Kader»
Atento ao efeito mágico dos reais convidados, das comitivas e das esquadras, das gentes e manifestações feéricas, o escritor Eça de Queirós deixou que lhe escapasse um apontamento tipicamente “lusitano”, nesse dia 17 de Novembro de 1869. “Apontamento” paradigmático, desses que dizem mais sobre Portugal e os portugueses que todos os estudos sociológicos…
Descuidado e confiante, o governo de Lisboa, oficialmente convidado para o acontecimento do século, resolveu mandar o “melhor” vaso de guerra ao Egipto, a corveta «Estefânia», de forma a representar Portugal. Porém, em pleno Mar Mediterrâneo, numa zona denominada «gata», desencadeou-se uma daquelas tempestades que só acontecem aos «lusíadas». A deficiente acção dos marinheiros e a frustrante surpresa que a tempestade provocou, acrescidas de alguns pormenores técnicos, deve ter “inibido” bastante o vaso de guerra que, desconjuntado, não pode figurar a tempo nas cerimónias oficiais em Port Said. Enfim, se este era então o melhor vaso de guerra da Armada portuguesa… estamos conversados!
Não oficialmente, Portugal estava “representado” pelo escritor Eça de Queirós e seu amigo, o conde de Resende, Luís de Castro Pamplona… Foi então que surgiu o acaso, sem que o escritor o tenha visto, a moldar a História…
Tinha largado do Tejo, com a antecedência de dois dias da corveta «Estefânia», a galera «Viajante» embarcação mercante pertença da firma «Bessone & Barbosa», comandada pelo capitão José Sabino Gonçalves que, às suas ordens, tinha vinte marinheiros. A galera dirigia-se a Macau e, muito próxima do navio de guerra, sofreu o mesmo temporal, mas bem manobrada conseguiu entrar em Port Said galhardamente. Era o dia de inauguração do Canal de Suez…
No meio daquela azáfama inaugural, parece que não se encontrou um piloto que assegurasse, como “batedor”, a segurança da travessia do canal pelas embarcações oficiais. Então, José Sabino Gonçalves, talvez pensando que reluzia a sua hora de glória, ofereceu-se para a tarefa, que desempenhou com eficácia. A glória, se assim posso dizer, foi pois arrebatada duplamente por um capitão da marinha mercante (civil!) e, através dele, para o Portugal país, e não para o “País do governo”…
A crónica avulsa deste sucesso que escapou ao “snobismo” do escritor Eça de Queirós que, assim, perdeu a oportunidade de escrever umas belas páginas, veio publicada, assinada por «Abranches» e muito resumida, na revista Ocidente (32º ano, XXXII, vol. nº1098, 30/7/1909). A origem da notícia prendeu-se então com a comunicação do falecimento, a 25 de Maio de 1909, de José Sabino Gonçalves (aos 73 anos), natural da bela localidade marítima S. Martinho do Porto, onde havia iniciado a sua actividade de homem do mar com apenas 9 anos de idade!
A veracidade deste sucesso do velho “lobo-do-mar” parece tem sido contestada no decurso de vários anos. Não se percebe porquê… Por fim, nos anos 90 deste século, alguém colocou na “Internet”, sob o nome do capitão, sem referência alguma fiável a notícia de que havia aparecido o «diário de bordo» da galera «Viajante», onde era mencionada a travessia do canal… mas nove dias depois da inauguração… Enfim, todas as notícias até então conhecidas seriam portanto pura fantasia! – Mas há aqui (continuo sem saber porquê?) “gato escondido com rabo de fora”…
É que a galera «Viajante» foi abatida ao largo de Porto Santo, a 2 de Outubro de 1917 por um submarino alemão, salvando-se a muito custo os doze homens da sua tripulação… Presume-se, pois, que o «diário de bordo», que sempre acompanha a sua respectiva embarcação, deve ter feito companhia aos doze marinheiros, “nadando” com enérgicas braçadas, e sem desbotar a escrita, a caminho do salvamento!
Galera «Viajante»