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Alentejo extravagante

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Joaquim Palminha Silva

«Neste sul de província deserta, completamente fechado ao espírito de crítica, e revivendo ainda as crenças lendárias dos séculos de obscurantismo e de servidão, não admira que aos episódios da admiração popular ingénua se misturem de quando em quando uns, mais grotescos, que […] só a muito esforço de morder lábios não recebem as francas gargalhadas». - Fialho de Almeida, in Estâncias de Arte e de Saudade.

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Há anos a esta parte, com incrível descaro, sem noção do ridículo nem réstia de bom senso, e estou em crer, sem fiável critério sobre a história da gastronomia alentejana, se assim posso dizer, a Câmara Municipal de Portel (CMP) resolveu alçar a pitéu de 1ª categoria a açorda alentejana. Não percebendo que se colocava fora do domínio da seriedade, com as suas penas de pavão a caírem no empedrado de ruas e travessas, entrou mesmo pelo despautério dentro e inaugurou o «Congresso das Açordas»!
Sabem os mais avisados que a açorda é uma comezaina de ganhão, tradicional “prato” pobre inventado por gente pobre que trabalhava de sol a sol, por conseguinte, algo com respeitável e penosa carga histórica sobre a deficiente nutrição e o ancestral subdesenvolvimento, em que andou mergulhada durante séculos a terra transtagana.
Porém, mediante um paleio trafulha, iludindo-se com exagerações, a CMP diz-nos, na sua propaganda para “atrair” desprevenidos forasteiros (julga ter descoberto novo “el dourado” turístico), que a açorda é «um dos pratos mais emblemáticos da gastronomia alentejana». – Sem dúvida, sem dúvida! Durante séculos, a açorda foi quase o único sustento dos braços camponeses, explorados nos campos do latifúndio!
«Congresso das Açordas»! – Com um “papel de embrulho” desta qualidade, não se poderia ter confundido mais as gentes nem intoxicado tanto o Alentejo… com o anedótico!
Decididamente, a ostentação estapafúrdia de vários cozinhados, que se podem arrolar na “enciclopédia” gastronómica da região, tornou-se uma febril obsessão. Cada ano que passa há mais meses ou semanas gastronómicas (do borrego, do porco, das sopas, da caça, etc.). Na vila de Alvito, por exemplo, a gastronomia perscruta o remoto passado e, espessa e insondável, foi nobilitada pela Autarquia actual. Assim, sem mais nem menos, em pleno regime republicano, a iniciativa gastronómica passou titular-se «Ervas da Baronia», numa alusão directa às gerações de barões que foram senhores do castelo de Alvito, notável construção do manuelino rural, se assim se pode dizer. Porém, convém saber que as ervas que entram nesta gastronomia, roçagam na terra e são, por sua remota e espontânea natureza, bem plebeias: carrasquinhas, catacuzes e espargos! Como se pode constatar, as iniciativas gastronómicas passam de desastradas a monárquicas e, espigando na parvoíce, aumentam o “anedotário alentejano”!
Os certames de gastronomia copiam-se uns aos outros, às vezes acontecem no mesmo espaço de tempo e, promovidos pelas Autarquias, beneficiam de propaganda própria, gastando cada Município ou Junta de Freguesia uns quantos euros em folhetos e cartazes, de forma a atrair os supostos “papa-açordas” de outras terras!
Enfim, com tanto certame gastronómico, repetitivo, maçador, indigesto, mais dia, menos dia havia de acontecer o insólito numa localidade alentejana: – No caso concreto, calhou a vez a Vendas Novas, cuja Câmara Municipal tresvariou em 2004 e, em vez da glorificação da consagrada e arqueológica gastronomia, pegou num “reportório” miniatura e mandou publicitar que na localidade passaria a ter lugar um… «Festival das Bifanas»!
Não admira pois que outro dia tenha aparecido um reputado realizador de documentários a filmar os “praticantes” do cante alentejano, de modo a reforçar a decisão do executivo político da Câmara Municipal de Serpa, que levou até à UNESCO a extravagante solicitação do cante figurar como «património imaterial da Humanidade».
Este realizador de um documentário intitulado «Alentejo, Alentejo», que se nos revelou de declarada tendência para antropólogo de povos “esquisitos”, entrevistado pelo semanário Expresso (20/9/2014), confessou-se fascinado por ter «feitoalgo sobre a identidade alentejana, a identidade de um povo»!
Nós já sabíamos que em Portugal, naturalmente, há evidências históricas e culturais da existência concreta do povo português! – Mas só agora, e através deste documentário, ficamos a saber que além deste milenar povo, no mesmo espaço territorial existem os extravagantes alentejanos, que costumam cantar em grupos masculinos uma espécie de “gregoriano profano”, com tal pitoresco e especial “estranheza” que, ao cabo e ao fim, tudo resulta na «identidade de um povo», diverso do português comum, supõe-se…
Convenhamos, não há razão para estranhar que um realizador estrangeiro filme de acordo com esta linha de investigação antropológica… – Afinal de contas, somos o povo sereno e radioso do «congresso das açordas»; das «ervas da baronia»; somos o povo da infalível cartilha que nos recomenda anualmente um «festival das bifanas», somos o povo que quer um “carimbo” internacionalizado para uma parcela musical da sua cultura dita popular!
Enfim, como nada custa (nem vai custar!), a “benfazeja” UNESCO acabou por considerar o cante alentejano como “património imaterial da Humanidade” (não consigo descortinar o que este absurdo quer dizer!) e o ego da pequena burguesia intelectual (de “esquerda”?) da região tem crescido até mais não! Na verdade, os norte-europeus há muito que sabem como contentar o “indigenato” pitoresco do sul, passando-lhe cartas de alforria que nada valem.
Agora, “de repelão”, todos falam do cante, organizam deslocações dos grupos de cante aqui e ali na região. Rebolam por todo o lado auto-elogios, repetem-se concepções e sínteses de estudos antigos (Fernando Lopes Graça e outros), sem citar as fontes… Enfim, nunca os “esclarecidos” alentejanos gostaram tanto de se ouvir a si mesmos…
Aconteceu entretanto que o “carimbo” da UNESCO sobre o cante alentejano abriu a ventarola dos trampolineiros profissionais, que até agora hibernavam na pasmaceira. Vai daí começaram a ter “ideias” (como estalidos de mola de guarda-chuva) à volta do dito cante. Um destes abencerragens, presidente da «Entidade de Turismo do Alentejo e Ribatejo», (vd. entrevista ao jornal Público, 8/2/2015), chegou à conclusão que se pode “empurrar” o turista «que chegue ao Alentejo», direcionando-o de forma a «assistir a espectáculos de cante», isto é, «que haja casas de cante como existem casas de fado». Nunca imaginaríamos que a alienação pudesse ser tão vivaz e possuir mil fôlegos! Considerará o leitor que esta “imaginativa” e inovadora ideia é fruto de uma paciente observação cultural e etnográfica: - Não senhor! Vejamos o que nos é dito…
O que resta da memória do cante alentejano, entretanto disseminado por agrupamentos mais urbanos que camponeses, uma vez desenraizado do labor rural onde teve origem, “sugeriu” a este presidente da «Entidade de Turismo do Alentejo e Ribatejo», a montagem de uma fantasia sobre o fantasiado “carimbo” do “património imaterial da Humanidade”. – Este cavalheiro, demonstrando ser “hábil” improvisador de reminiscências económicas, explica a sua grande base teórica para criar «casas de cante»: «Não basta que o cante tenha sido classificado, é preciso que isso seja uma efectiva mais-valia para o turismo da região, que represente mais negócio». Eis como se talha uma “batota” comercial doméstica a “feijões”… Objectivo? – Lançar mão de uns milhares de euros do «Quadro Comunitário de Apoio», que se estende até 2020, para fabricar «casas de cante» … Aqui está, pois, para que vai servir o cante alentejano, pretexto cabotino de suposta «efectiva mais-valia»!
Por fim, o presidente desta «Entidade de Turismo…» (1) e o “promotor” executivo do cante alentejano, decidem orientar as ambições culturais da Câmara Municipal de Viana do Alentejo e Junta de Freguesia das Alcáçovas, seguramente após escutarem neste Concelho uma magnifica sonoridade, que consiste nuns badalados requintes musicais, vistos à dependura no cachaço do gado por estes campos fora… - Chocalhos!
E lá vão os chocalhos (a pretexto que se estão a finar!) a caminho do «património imaterial da Humanidade»! – Esta gente, para se orientar nos temas da cultura e da etnografia regional, precisa olhar em redor os campos de pasto, ver o gado, e ouvir os chocalhos a badalarem. Uma vez isto feito, depois de ruminarem “cultura popular”, lamuriando à direita e à esquerda sobre a falta de tudo, lá conseguem sacar a orquestração de mais um assunto: - Chocalhos!
Esta região é francamente sui generis: - Numa rotunda de Castro Verde existe um monumento aos porcos que, figurados em tamanho natural, pastam sob chaparros sintéticos, demonstrando-se desta forma, pública e monumental, como a localidade está agradecida aos suínos!
Não falemos muito da caricata estátua anã a Cristóvão Colombo em Cuba, com a mão em pala frente aos olhos, que além de desfigurar um simpático largo face ao Tribunal, assusta os desprevenidos com “a sua teimosia” em querer ser natural desta vila, contra os pareceres mais avisados.
Há um Alentejo assim, que se põe em “bicos de pés” por “dá cá aquela palha” e não olha a meios nem quer saber de razões, “bom senso” e etc. e tal! Como aquelas pessoas, coitadas, que têm o complexo de inferioridade e, portanto, apresentam comportamentos que oscilam radicalmente entre o negativo e o exagero… e às vezes abrem carreira pouco original caindo no suicídio!
Apesar de tudo, saiba-se que o Alentejo é região onde ainda existem executivos políticos autárquicos que têm o hábito das informações testadas “cientificamente”, escrupulosas e sérias. Como por exemplo acontece em Santiago do Cacém.
 Uma senhora investigadora da Universidade de Wuppertal (Alemanha), proprietária de herdade onde se pratica «turismo ecológico» (?), em Aldeia dos Chãos (Santiago do Cacém), veio de comunicar os primeiros resultados de uma investigação “pioneira” em Portugal (desde Viriato que, na Lusitânia, tudo é pioneiro!) sobre a luz solar naquela área.
Entretanto, um cavalheiro alemão, colega desta científica senhora, garante que as propriedades da luz solar em Santiago do Cacém são muito diferentes das que existem na Alemanha (extraordinário!) e, por isso, neste espaço alentejano, as pessoas tem uma saúde melhor que as de outras regiões.
Segundo a proprietária da turística e ecológica herdade, é «importante saber que há um lugar com benefícios para o bem-estar das pessoas, para a sua saúde e até para atrair investimentos» (que coincidência… para o investimento turístico feito aqui por esta senhora!).
Caríssimos compatriotas, que grande e inesperada beneficência está a ser proporcionada… pelo “astro-rei”: – Santiago do Cacém tem uma luz solar exclusiva que, suplementarmente, é fonte de saúde, boa para o ritmo cardíaco, a tensão arterial, e, vejam lá, até ajuda a eliminar a depressão!
Não nos deve espantar, pois, que um lúcido e prestante vereador, o senhor Albano Pereira, membro do actual executivo político autárquico, pretenda dar forma administrativa ao fenómeno, introduzindo a luz solar, por meio de um diploma específico, no nosso sistema burocrático. Como? – Levando a cabo a «certificação da luz solar de Santiago do Cacém»! Enfim, a luz solar deve, com paciência e submissão, obedecer ao interesse público do Pais, do Alentejo, de Santiago de Cacém!
Todavia, aqui deixamos uma reflexão amável, dirigida aos investigadores científicos germânicos e à lusitana vereação da Autarquia de Santiago do Cacém Se por qualquer “fuga de informação” os países da Península da Escandinávia (Noruega, Suécia, Finlândia e Dinamarca), bem como o norte do Canadá e da Rússia, alcançarem algum conhecimento sobre esta possibilidade (certificação da luz solar), aventada pelo senhor Albano Pereira, de Santiago do Cacém, e, em consequência, moverem empenhos e empregarem as suas vastas disponibilidades diplomáticas para, por sua vez, certificarem o seu «sol da meia-noite», fenómeno que ocorre entre Abril e Setembro, isto é, o período em que o sol não se põe nessas regiões, podem assim provocar um engarrafamento de pedidos de certificado na respectiva “secretaria”, desorientarem os funcionários “solares” e, no fim de tudo, banalizarem este tipo de documentos de tal modo que, agastado e com incómodos gástricos, o Sol nunca mais olhe para nós com o mesmo carinho!
            Por cautela, na presunção, sempre possível, de se “descobrir” que os autóctones desta região são “um caso especial”, sempre opto por admitir que os alentejanos são uma espécie rara, uma de “etnia” (só lhe falta um dialecto!) a “encaixar” ou não no conjunto do povo português. – Daí a sua extravagância
Naturalmente a merecer a atenção de estudiosos mais abalizados, capazes em definitivo de classificá-la, defini-la, confirmando-lhe a enorme e substancial capacidade para o inédito, o génio decorativo, a organização de galas e triunfos ajaezados de “modernidade” e, num suplemento de juízo portátil, capaz de adoptar os critérios selectivos de organismos estrangeiros (género topa a tudo) enquanto um “diabo esfrega o olho”, e dormir sobre esta almofada sem pesos na consciência nem pesadelos!
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(1) – O cavalheiro responsável pela dita «Entidade de Turismo…», agora tão amigo do cante e etc., é exactamente a mesma personagem que esteve na direcção e promoção do desmantelamento do que restava do Museu do Artesanato (Évora); isto é, do «Centro de Artes Tradicionais», para em seu lugar ser mostrada uma colecção de “design” industrial de um privado, que inicialmente chamaram de “Museu”… A memória deste tipo de gente é curta, e a vergonha muito pouca ou nenhuma!

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