©Joaquim Palminha Silva
O que escrevo a seguir não é uma nova armadura literária, apenas desejo ser objectivo e sincero. Este português de que falo não é nenhuma ave rara, mas um pacato cidadão a quem apoquentam problemas de reflexão como toda a gente, mas que em vez de entrar no reino de pensamento de chapéu na mão, disposto a escutar a voz da razão, vira as costas desdenhoso à porta do raciocínio e parte noutra direcção, assobiando sabe-se lá que música, a refazer o mundo à sua imagem e semelhança.
Escutemo-lo pois, antes que ele abale para outro sítio. Talvez da sua pobre confusão nos venha alguma luz…sobre todos nós!
«Não há-de ser nada!». Expressão muito vulgar no linguajar de rotina da lusa gente. Para perscrutar os recantos da alma portuguesa não há melhor que estas frequentes expressões, estas frases-feitas que traduzem a vibração da tosca forma de pensar da gente comum. Podemos considerar que, conscientemente ou não, a expressão encerra, em simultâneo, duas garatujas vagabundas da inspiração “filosófica” lusitana.
A primeira, supõe a expressão com qualidades reconfortantes perante a adversidade. A segunda, supõe que a mesma expressão possui o condão mágico de apelar a ignorados “espíritos protectores”, para que amparem algo que se sabe de antemão não reunir condições de êxito. «Não há-de ser nada!», é o mesmo que pedir ao acaso que proteja a insuficiência, ao “destino” que seja tolerante para com a leviandade sistemática, a imprevidência continuada.
No geral, acalcanhado pelo fatalismo, o português acredita que se salva das situações embaraçosas encontrando a expressão mágica adequada, que salvará a Pátria e os desprevenidos compatriotas pelo bom uso que souber fazer, em dado momento, de uma frase inspiradora. Por si mesma, a expressão define a fase que atravessa a sociedade portuguesa. «Não há-de ser nada!»: - O mesmo é dizer que se espera o pior! O mesmo é dizer que já estamos no começo do fim de tudo!
Parece que os portugueses andam sempre à procura de acidentes, desastres, azares, infelicidades que os tornem solidários. Só assim conseguem demonstrar ao mundo como são amigos uns dos outros: - Somos o povo do triunfo na derrota; da ascensão na queda, da saúde doentia, da infeliz felicidade! Enfim, não é por acaso que gostamos tanto do fado, essa canção tão chorada, tão sofrida…
Para estas situações que pedem ligaduras sociais, adesivos políticos, almofadas repousantes de Bancos, desinfectantes orçamentais e ajudas de custo milionárias, temos vários fragmentos “raciocinantes”, retirados da “enciclopédia” que alberga a teia interpretativa lusitana. Um destes fragmentos é a expressão «Depois logo se vê».
Com esta frase embainhada como uma espada, estabeleceu-se uma tendência para esgrimir na atmosfera a hipotética acção prática. O investigador atento notará logo que a frase denúncia quanto a acção foi levada a efeito com preparativos trémulos, e de duvidosa continuidade no espaço e no tempo. Porque este «Depois logo se vê» é a sonolência do consciente dos lusitanos depois de encetada uma obra, independentemente das características desta. Sonolência que acaba por adormecer por completo a visão do imprevisto, que se compraz no sentimento de satisfação da produção circunstancial, e se entusiasma com os dados imediatos do senso impressionável, sem mais indagações, contente com os pontos de vista familiares, com a rotina. Como custa a compreender que toda a obra não se esgote após a sua realização, e nada se programa para depois (a curto, médio e longo prazo), por exemplo, face a eventuais emergências, o português só consegue imaginar, para descansar a cabeça, a existência da almofada: «Depois logo se vê»!
Por muito desassombrado de influências alheias que seja o espírito português, este não consegue permanecer insensível à obra de fachada (quando é que o português se não preocupa com o exterior das coisas?!), nada há de mais deslumbrante do que a sua sofreguidão dos sentidos. No festim da vida trata primeiro que tudo de fartar-se, de encher a sua existência de impressões súbitas, desejos primários e obras de pompa e circunstância. Depois, ai de quem se atreva a pensar melhor do que ele ou diferente dele! Ai de quem o queira prevenir, lembrando-lhe o dia de amanhã.
«Depois logo se vê»!
Dotado desta curta visão, mais tarde ou mais cedo acorda cariado pelo depressivo regime do improviso. E à violência do despertar no seio do desastre, junta-se-lhe a imagem ineficaz dos seus desejos impotentes, porque de curtas vistas… Por fim, o descolorido «Depois logo se vê», transforma o português num passarito apanhado na rede que implora que o salvem. Os seus soluços desesperados têm o som excêntrico de chuva que tomba num telheiro de zinco… E os olhos, afogados em lágrimas, já não o deixam ver nada…
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