Votar, para mim, é um ato solene. Faço-o com a mesma comoção com que oiço o hino. É o meu gesto mínimo e fundamental para honrar a liberdade que outros conquistaram, essa em que vivo há 40 anos e que me dá a honra da participação, pelo menos através do voto, ao eleger quem me represente na gestão do país, nem que seja, como nas eleições de domingo passado, num espaço alargado europeu.
Trata-se, intimamente, de um ato institucional muito meu. Quase me apetece estrear uma roupinha nova. Eis se não quando, na minha procura de citações sobre liberdade, respiguei a seguinte frase: "Ser-se livre não é nada fazer, é ser-se o único árbitro daquilo que se faz ou daquilo que se não faz."O autor é um francês (hélas!), filósofo e moralista, do século XVII, Jean de La Bruyère que ficou para a história com apenas uma obra a considerar, mas que acertava aqui em cheio no tema que queria aflorar nesta crónica pós-eleitoral que espelha como o meu dia de reflexão foi muito mais o dia seguinte do que a véspera: poder votar e não o fazer quando já se quis e não se podia.
O número dos que não votam é um fenómeno que começo a considerar de massas. Uma multidão que, a juntar-se aos que nasceram já com a liberdade de voto, não lhe dá o valor que já deram os que sabem o que é não poder votar e que ao fim de 40 anos desistem. Isto em Portugal, que na mais velha democracia do mundo, os EUA a abstenção é há muito um sucesso eleitoral. Um fenómeno que engrossa as massas, pois então… Impossível não o achar, quando a vitória é a abstenção e a população está tão envelhecida. Ora eu que dedico uma parte do meu interesse profissional à literatura e cultura de massas, o que me faz conhecer, no meio do que tem interesse, do piorzinho que por ali anda e que desperta paixões e seguidores aos magotes, até tenho uma visão minimamente compreensiva de quem não vai às urnas, como sói dizer-se. A única coisa que posso fazer é, na minha atividade e nos meus relacionamentos pessoais e sociais, tentar alertar essas pessoas para os benefícios de mudarem essa atitude. Como quando encontro quem sendo um leitor apaixonado de um determinado autor fraquito ou de um tipo de livro insonso, tento, dentro do género e da temática, dar-lhe a experimentar algo melhor, sem que essa experiência lhes destrua nunca o prazer de ler.
É o que parece estar a acontecer com estes não-eleitores. Partindo do princípio que os que são hoje não-eleitores já foram eleitores minimamente convictos, e que o assunto da gestão do bem público por determinadas pessoas em quem a delegamos os desiludiu, deixando-os em casa, é o mesmo que perdermos um bom leitor ainda que de um género de livros que, em termos literários e querendo ser literatura, deixam um bocadito a desejar. Estaria, quem como professor de literatura tem a missão de angariar mais e melhores leitores, a prestar um péssimo serviço à sua profissão e havia que melhorar o estado das coisas para reverter a situação. Felizmente, uma nova geração de excelentes autores (em Portugal mas não só, e alguns dos mais velhos também, não sejamos injustos) vai conseguindo ganhar recém-leitores e inverter esta tendência.
O que parece transparecer deste fenómeno de massas, agora aplicado assim à abstenção, é que ao invés de se pensar em melhorar a imagem, e o conteúdo já agora, da representação que os eleitos significam para os eleitores, o que é função não apenas dos políticos como dos que fazem opinião, haverá uma meia-dúzia a quem interessa que uma imensa maioria fique em casa em dia de eleições. Parece, digo eu.
Até para a semana.Cláudia Sousa Pereira (crónica na Rádio Diana)