(Clet Abraham)
Haverá ainda mercado para o sonho?
Ou serão os sonhos de Abril uma miragem somente?
Quando olho em volta e vejo tanta gente a passar mal, sem apoios sociais, sem os mais elementares serviços de proximidade, gente que há bem pouco tempo vivia dignamente, com emprego, com assistência na doença, com a garantia que as suas contribuições eram contribuições para a saúde de todos, para a justiça para todos, para a velhice de todos, para a educação de todos os filhos, interrogo-me: não será hoje por hoje a revolução de Abril, um dramático “inconseguimento”?
Abril restituiu-nos a dignidade. Não a dignidadezinha pífia do bom aluno que passa em todos os exames, mesmo que para isso tenha de copiar, ou de submeter-se aos desígnios do avaliador.
Com Abril, reganhámos a nossa história, reconquistamos a capacidade de olhar o mundo de frente e de afirmar sem medos que não somos nem melhor nem pior do que os outros. Que somos donos do nosso destino!
E porque o somos, aprovamos uma Constituição que a todos contempla, independentemente do género, da raça, do credo, da condição social.
Levantamos uma escola que nos orgulha, criamos um serviço nacional de saúde que não deixa ninguém sem assistência, construímos estradas, hospitais, universidades, florescemos em investigadores, em artistas, em gente da cultura, criamos empresas e trabalho e preocupamo-nos com os que ficam de fora, porque se auto marginalizam ou porque são diferentes e por sê-lo, são arredados da vida pelos “bons samaritanos”.
Criamos um país que é! E que por ser, abraça a todos por igual, independentemente do que tenham, do contributo que possam dar, das vicissitudes das suas circunstâncias.
Voltámos a ser o país de Fernão Lopes, de Camões, de Vieira, de Pessoa, de todos aqueles que cumpriram sonhos, porque os sonhos servem para isso mesmo, para se cumprirem no destino dos que um dia os tiveram.
Entretanto quarenta anos volvidos, percebemos que afinal os esbirros do passado se reproduziram silenciosamente e que silenciosamente foram construindo a sua desforra.
Apoderaram-se do poder, usando a Democracia que em Abril os apeou e foram, insidiosos e diligentes, construindo um seu caminho. Fizeram-no sem dar nas vistas, através de pequenas ações, quase invisíveis. Um direito que aqui se tira, um despedimento que se concretiza, uma frota que se desmantela, uma empresa pública que se privatiza, um hospital que se fecha, um posto de correio, uma repartição de finanças... a escola que se paga, a reforma que se nega, a emigração que se cultiva, a saúde que não pode dar prejuízo, os velhos que se lixem, os doentes que se amanhem, os jovens que são irresponsáveis e bêbados, e os livros! Esse horror! Esse desperdício de papel, essa pura perda de tempo quando o que é preciso é trabalhar! Levar o país para a frente, mesmo que não haja trabalho e que o trabalho que existe seja precário e mal pago!
E querem justiça? Que recorram aos tribunais e que paguem! Porque julgar não é para todos e custa dinheiro!
Que se lixe Sacadura Cabral que só gastou gasolina! E o Gil vicente que vá para o raio que o parta! Que os atores e os dramaturgos são uns chulos que só querem viver de subsídios! E os funcionários públicos? Esses só querem é mama!
Estão a conseguir dividir-nos! Pôr uns contra os outros e todos contra o mundo! Estão a conseguir transformar a Escola numa linha de montagem e a estupidez num estado de bem aventurança!
Estão a conseguir transformar a solidariedade num desperdício e a esmola na suprema bondade, atribuída aos gratos dos pobrezinhos, dos farroupilhas que apenas servem para servir e votar e darem o lombo às porradas da miséria!
A educação? É perigosa! Se for além da aptidão para o trabalho, porque quem sabe pensa, e quem pensa questiona.
Estão a transformam-nos a nós portugueses, em gente com prazo de validade, gente descartável.
Para eles, nem gente somos! Apenas amostras! Umas coisas quaisquer!
É isso que somos! O produto do inconseguimento!
Um país com um presidente corta fitas e um governo de paus mandados! Uma amostra de país que acaba de colocar no seu Panteão, o futebol e o fado...
Reze-se então a missa do sétimo dia, que o defunto já cheira mal!