Há 40 anos este dia era o último de um longo tempo de trevas. Um tempo que alguns querem agora branquear, diga-se com notável sucesso, fazendo comparações absurdas.
É certo que o sucesso desse branqueamento se deve em muito ao caminho de retrocesso feito nos últimos 38 anos, com particular destaque para os últimos três, em que as condições de vida da maioria quase nos colocam nesse tal tempo de trevas.
Para quem não viveu esses tempos, ou era tão novo que não tem deles memórias, é difícil imaginar algo pior do que estamos a passar e no entanto, acreditem, era bem pior.
Imaginem um país onde uma elevada percentagem dos seus habitantes era analfabeto, onde não existia serviço nacional de saúde, salário mínimo, férias pagas ou subsídio de natal. Onde apenas uma ínfima minoria dos que entravam na escola primária chegavam à universidade.
Imaginem um país em que menos de metade das habitações tinha abastecimento de água e saneamento básico e onde a rede de transportes públicos fora das grandes cidades era incipiente.
Imaginem um país onde a palavra escrita ou dita na comunicação social era sujeita a censura, onde não havia liberdade de manifestação ou de reunião, onde o único partido autorizado era o do governo, onde existia uma polícia política que perseguia e prendia os opositores, suportada numa imensa rede de informadores.
Imaginem um país onde os presidentes de câmara eram nomeados pelo governo.
Imaginem um país envolvido numa guerra colonial em diversos pontos de África e que para lá atirava a sua juventude para defender uma decrépita ideia de império.
Bem sei que os tempos que vivemos parecem aproximar-nos desse tempo, com as amputações do serviço nacional de saúde, os cortes nos salários, a tentativa de pôr fim a subsídios de férias e natal, o drástico aumento da distância entre os mais ricos e os mais pobres, o encerramento de escolas, os constrangimentos à autonomia do poder local democrático, a instauração de um outro tipo de censura e muitos outros indicadores que nos empurram quatro décadas para trás.
É verdade que naquele tempo, tal como hoje, a riqueza estava distribuída por meia dúzia de famílias. É verdade que os discursos de Cavaco são cada vez mais parecidos com as conversas em família de Marcelo Caetano.
É verdade que, apesar de existir liberdade de formação de partidos, são criadas as condições para que apenas aquela espécie de União Nacional tripartida chegue ao poder.
Mas ainda assim, temos um Constituição que resiste, é-nos exigida menos coragem física para lutar, há avanços civilizacionais que, por muito que tentem, vieram para ficar.
E mais importante que tudo temos hoje a certeza, porque vivemos os tempos exaltantes da Revolução, de que é possível uma vida diferente se projectarmos no futuro os seus valores.
Como diz a minha prima Zulmira, “deixem-se lá de tretas o outro fascismo era bem pior.”
Até para a semanaEduardo Luciano (crónica na rádio diana)