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10 de Junho: podia ser uma parábola, mas não. É um país em que as diferenças sociais se acentuam cada vez mais.

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Por imperativos profissionais estive em Elvas os últimos dois dias. O pretexto era o das comemorações do 10 de Junho, o que para qualquer jornalista é sempre coisa de fugir a sete pés. Desta vez era no Alentejo e lá estive, peito feito às cerimónias, aos discursos, às encenações. Em ano de crise e em época de corte em salários, direitos, reformas, feriados, o snobismo, o novo riquismo, a exuberância não abrandaram. Desde os emplumados das forças armadas (cada vez mais do mesmo, passada que foi a euforia do MFA), transformados numa nova brigada do reumático, mas já sem guerras para travar a não ser pelo próprio sustento, até ao cheiro a naftalina da actual classe político-empresarial é o Portugal de sempre, velho, com sabor a mofo, cerimonioso, corrupto e venal que desponta nestes dias históricos.
Alguém ao meu lado comentava que todos aqueles carros de alta gama, aquelas poses de sobranceria, aquela snobeira assumida, que é de classe social, mas que também regressa sempre que o país e as suas élites estão em crise profunda, dariam bem conta do buraco das finanças públicas. Não sei. Só sei que tudo aquilo foi profundamente triste, sem alegria, sem vida, sem povo. O povo que esteve bateu palmas ao ouvir os gritos ululantes das tropas especiais, de caras pintadas, como se estas não fossem umas forças armadas sem sentido: custam os olhos da cara para, dizem os entendidos, em caso de ataque, apenas serem capazes de resistirem um par de horas, mas também não se coibiu de dizer-  tanto luxo, tanto gasto de dinheiro para nada. Eu ouvi, testemunhei e gravei.
E mais do que isso: o verdadeiro sorvedoiro de dinheiro que são as muitas polícias que, extinta a PIDE, tomaram conta dos "palcos". Cada corpo policial tem as suas unidades especiais, mais vísiveis ou mais secretas. Em Elvas, havia bem um polícia para cada dois cidadãos anónimos que participaram nas cerimónias. A preços actuais, o que todos pagamos para as polícias, é bem mais elevado do que antes do 25 de Abril. O Portugal democrático tornou-se num país de corruptos, que delapidaram e delapidam os dinheiros públicos, e de um vasto corpo policial que os defende e protege - é esta a imagem que passa para a opinião pública e que não está muito distante da realidade.
Dois momentos de protesto marcaram estas comemorações. Dois momentos incipientes, mas diferenciados. Um, ontem, quando as comemorações presidenciais fizeram cortar o trânsito e impediram um funeral de prosseguir o seu caminho. Com o carro funerário parado fizeram-se ouvir os protestos da família. Poderia ser uma metáforo do funeral em que o país se transformou.
Outro protesto foi ensaiado hoje por sindicalistas da CGTP durante a cerimónia militar. Passos Coelho e Cavaco Silva foram vaiados e mostrados cartões vermelhos a exigirem a demissão. Mas foram protestos localizados (apesar de muitos dos presentes a eles se terem associado).
Maior simbolismo teve, para mim, quando de regresso ao carro, no final da cerimónia, encontrei um vagabundo, calças rotas e cheiro nauseabundo, a alimentar-se do caixote de lixo público junto a uma das principais marisqueiras de Elvas. O homem, barbudo, remexia no lixo e ia comendo o que encontrava - eu vi umas rodelas de linguiça e chouriço de sangue, mas outras coisas haveria. E, solidário, ia colocando parte daquilo que encontrava no lixo sobre um pequeno guardanapo de papel, no chão, para que o gato que o acompanhava também pudesse comer.
A poucas centenas de metros dali alguns lustroso seres da nossa praça preparavam-se, à mesma hora, para almoçarem (em nome da Nação, seja lá isso o que for), desde sempre alimentados pelos dinheiros públicos, numa refeição oficial, de ementa suculenta,comemorativa de um dia que deveria ser de todos. Mas não é. 
Fiquemo-nos na parábola: o vagabundo que encontrei dividia do caixote de lixo o que não tinha com o gato que talvez nem fosse seu. Ao mesmo tempo, toda a lustrosa classe político-militar-empresarial, alimentada desde a nascença pelo maná dos dinheiros públicos, comportou-se, também neste 10 de Junho, como sempre se comportou: como se fosse uma classe à parte, com direitos especiais, trajectos e lugares escolhidos e garantidos. Uma classe especial. Acima do vulgo.
O povo pôde gritar o seu descontentamento, mas pouco mais - a classe que manda (ao contrário do vagabundo que encontrei) nada quer dividir. É tudo seu: o poder, a riqueza, o mando.
Cada vez há mais espaço para um novo 25 de Abril. Faltam é os homens.

A Vaia a Cavaco (à chegada com jipes da tropa, armados, à frente e atrás). Depois morteiros e gritos de demissão.



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