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De como se perde o sentido de cidade e se ganha o espírito de seita

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Já há alguns bons anos que, enquanto cidadão, jornalista e interveniente no devir colectivo, observo algo que é bem carismático da diferença entre cidadania e partidarite. É algo que é facilmente verificável em todas as ocasiões, mas sobretudo nas alturas de mudança política nas autarquias. Ou seja: dado o facto de determinada força política estar ou não à frente do projecto político local assim se altera o seu posicionamento sobre os acontecimentos e as iniciativas locais. No anterior mandato autárquico, por exemplo, aqui em Évora, os eleitos de então foram responsáveis por um conjunto de iniciativas que tiveram réplica e continuidade, na maior parte dos casos, neste mandato, agora da responsabilidade de outra cor política. Os antigos eleitos agoram não comparecem - eles que cantavam loas a essas iniciativas e faziam apelos à participação  (fossem elas quais fossem desde uma mostra gastronómica, a eventos desportivos ou à presença numa exposição na FIL); enquanto que os hoje eleitos também não pouparam críticas às anteriores iniciativas em que, em geral, não estiveram presentes - idênticas em tudo às que hoje promovem e para as quais apelam à participação de todos.
Sempre me pareceu este facto caricato: os eleitos apresentam-se e representam-se em tudo o que são iniciativas, engradecendo-as do ponto de vista propagandística e enaltecendo os seus organizadores, sempre que estão no poder; na oposição, diminuem o seu alcance e, em geral, não participam. É como se as iniciativas não valessem por si, mas apenas por quem as organiza. Se é o nosso grupo que organiza a Feira do Livro ela é excepcional; se é o grupo do lado que faz a mesma Feira do Livro nem lá vamos e tudo é passível de crítica.
É este o estado do poder local. O que há um ano era mau, eleições passadas, começa a ser bom, desde o projecto de hotel até ao estado do património (quem não se lembra que ainda há alguns meses - segundo alguns - Évora estava "em risco de perder o estatuto de Património Mundial?" Claro que agora já não está...).
A partidarite a que chegou o poder local é semelhante - e em muitos casos, pior - do que a que se vive no poder central. Não seria grave se aqui os actos de hipocrisia política, de poder pelo poder, não fossem tão ou mais visíveis do que a nível do poder central. Mas são. Todos os dias vemos (e aqui todas as forças políticas representadas nos órgãos municipais são co-responsáveis) autênticas acrobacias: aquilo que ontem se criticava fortemente, hoje é aceite de braços abertos só porque se está no poder; o que ontem se desculpava porque era próximo da nossa força política hoje está sujeito a todas as críticas, agora que se está na oposição.
Évora merecia um estudo de caso. Não por ser diferente dos outros munícipios. Este estado é generalizado. Mas em Évora as cores de que se pinta o ambiente colectivo são ainda mais fortes. Há um ano atrás, a oposição suspeitava e não acreditava em nada que viesse da maioria na autarquia e ridicularizava cada uma das suas medidas ou atitudes, não colaborando e não participando - mas sim contestando - a generalidade das iniciativas. Hoje, apesar ainda do período de "tolerância" temporal, é essa também a atitude da oposição: desconfiança, não participação e contestação. Por mais migas amigas (ou outras iniciativas, mesmo vindas de "outros tempos") que se façam na Praça do Giraldo só lá vão os amigos de cada um.
E assim, por causa destas partidarites agudas, se perde (hoje como ontem) o sentido de cidade e se ganha o espírito de seita. E Évora é cada vez mais um conjunto de "aldeias" que pensam, suspiram e vivem em separado, cada qual com a cor da sua bandeira partidária e sempre com a mesma solidão e incapacidade de, como agora se diz, "fazer cidade" (e, ao contrário do que alguns julgam, isto nada tem a ver com classes, nem com luta de classes - é uma divisão interclassista em que o que diferencia cada um dos grupos em presença é tão pouco que procurar diferenças é como procurar uma agulha num palheiro).

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