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Carnavais e entrudos

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"Que ideia a de que no Carnaval as pessoas se mascaram. No Carnaval desmascaram-se", dizia o Vergílio Ferreira que, se fosse vivo, teria feito no sábado 98 anos.
Os carnavais mais famosos do mundo são os de Veneza e do Brasil. O antepassado do carnaval brasileiro é português e chamava-se, como nós ainda cá chamamos às vezes, entrudo. Na colónia brasileira o entrudo era festejado pelos escravos que saíam pelas ruas com os rostos pintados, atirando farinha e bolinhas de água com cheiro às pessoas. Era considerada uma prática violenta e ofensiva, mas era bastante popular e acabou por resistir às interdições.
Há algo nisto do entrudo que me faz pensar nas praxes. Parece-me que as praxes se poderiam integrar nesta categoria de manifestação pública. E, já agora, aprendermos todos, quem gosta e quem não gosta delas, alguma coisa com esta história do entrudo… Atente-se nestes factos sobre entrudos e carnavais, e veja-se se não se aplicam a tudo o que entra no domínio do caos cíclico e que serve precisamente para lembrar, ritualmente, que após o caos vem, ou devia vir, a ordem.
No carnaval brasileiro as famílias brasileiras mais abastadas não comemoravam na rua, inicialmente com os escravos e depois com os populares, ficando nas suas casas onde havia brincadeiras. E as jovens moças das famílias de reputação ficavam à janela, mas também a atirar água a quem passava
Em meados do século XIX, no Rio de Janeiro, a prática do entrudo passou a ser criminalizada, principalmente após uma campanha veiculada pela imprensa. Enquanto o entrudo era reprimido nas ruas, a elite do império criava os bailes de carnaval em clubes e teatros. A elite do Rio de Janeiro criaria ainda as sociedades, que passariam a desfilar nas ruas da cidade. Enquanto o entrudo era reprimido, a alta sociedade começava a tomar as ruas.
Nos finais do século XIX, tentando adaptar-se à disciplina policial, foram criados oscordões e ranchos. Os primeiros recorriam ao modelo das procissões religiosas com manifestações populares, como a capoeira e os zé-pereiras. Os ranchos eram cortejos praticados principalmente pelas pessoas de origem rural. As elites que frequentavam os bailes de fantasia usavam máscaras e disfarces inspirados nos bailes de máscaras parisienses com origem na commedia dell’arte.
Quanto ao Carnaval de Veneza, surge a partir da tradição do século XVI, em que a nobreza se disfarçava para sair e misturar-se com o povo. Ao contrário de outras comemorações desta natureza, que nascem principalmente da mobilização popular, esta celebração é originalmente um ritual promovido pela elite financeira e cultural. Caracterizada até hoje pelo uso de máscaras e figurinos que tentam, atualmente, reproduzir o estilo dos nobres dos séculos XVII e XVIII, ou os modelos apresentados também pelas tais personagens da commedia dell’arte, a Praça de São Marcos é invadida pelo povo e por turistas, enquanto as elites continuam a refugiar-se nas majestosas mansões e nos castelos do Gran Canale, onde há também requintadas festas.
Curioso é que, em finais do século XI, o carnaval de Veneza figurava nos registos como festas que se prolongavam ao longo de seis meses e o uso de máscaras tinha-se tornado tão habitual que foi preciso criar leis para regular a sua frequente utilização. Muitos ladrões e assassinos ocultavam-se por trás delas e várias pessoas cometiam adultério protegidas pelo anonimato.
Tudo isto nos faz pensar que com uma máscara, e abusando de um uso, costume ou tradição, se pode estragar o que devia ser um prazer e um divertimento.
Até para a semana.

Cláudia Sousa Pereira (crónica na rádio diana)

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