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Batotices

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Dizia o Émile Voltaire que "fazer batota ao jogo e não ganhar, só de um tolo." O que assistimos na semana passada na AR não foi mais do que uma imensa e pública batota ao abrigo da democracia. Não foi uma ilegalidade, mas foi uma jogada pouco limpa em nome da escolha, que é também uma das regras da democracia, essa que, não sendo a perfeita forma de governo é a melhor, a que temos e a que temos obrigação de aperfeiçoar, os que governam e os outros, diariamente, se não quisermos cair em coisa pior.Podia, mas não vou falar, da tremenda injustiça que o vazio de uma lei que permita a co-adoção e adoção por casais do mesmo sexo. Injustiça para crianças já nascidas nesta situação familiar ou à espera em orfanatos. Injustiça perante a desigualdade de duas crianças, uma em situação de casal heterossexual, mesmo não tendo sido um deles o progenitor, outra num casal homossexual, permitindo-se a uns perfilhar e a outros não.Vou antes falar desta batota no jogo político, entendido este, nesta crónica, como o exercício entre poder e contrapoder, seguindo as regras estabelecidas, uma delas que dá a uns maior responsabilidade na prossecução do objetivo final, mas indeterminado no tempo, de cuidar e legislar no sentido de que o bem e interesse públicos sejam defendidos. Jogo também, já que os jogadores são julgados vencedores ou vencidos, não apenas pela História, que demora, mas pelos populares que escolhem os jogadores e lhes alteram as posições, em determinados momentos a que chamamos eleições. Os tabuleiros de jogo são vários. No nosso caso português vão do local ao europeu passando pelo nacional. E é por isso que devemos tentar que nos expliquem o melhor possível as regras, para que a nossa escolha seja a mais consciente com os nossos princípios, no momento principal, e talvez único, em que somos de facto ouvidos para entrar nesse “um dos jogos” que nos governa (noutros não temos, pela nossa condição humana a que se chama Vida, grande hipótese de escolha).
Assim vistas as coisas, a importância da escolha assume um aspeto assustador, a que muitos fogem, com argumentos em meu entender pouco válidos ainda que legítimos, já que, como sabemos, o voto não é obrigatório, sendo um dever, e a contestação é um direito de todos e usado por muitos em formas e doses diferentes. Regras… que se podem sempre mudar, entenda-se, dentro de outras regras maiores a que normalmente chamamos princípios.
Ora, ao que assistimos na semana passada foi a uma jogada batoteira, já que se uns estavam a levar o jogo a sério, outros houve que, vendo-se na eminência de uma derrota na jogada, resolveram usar uma estratégia que, na opinião de todos ainda que na decisão final do PR e do TC, evitasse essa derrota ou, pelo menos, a adiasse. A batota é isso mesmo. É quando num jogo uns o levam a sério, jogando com astúcia a sua melhor maneira de o ganhar de forma limpa, e os outros, os batoteiros, não. Perguntarão os senhores como é que tendo maioria os que fizeram batota estavam em risco de perder. Fragilidades no grupo, talvez. Até podia ser, mas não julgo que seja a única razão. Divergências de opinião nestes grupos, a que se chamam normalmente partidos, são comuns e, reconhecendo-se mais nuns no que noutros, poucas vezes são as causas de derrotas fora do grupo, mesmo se também neles haja jogadas tão pouco claras como esta batota. Mas, enfim, essas são lá com eles, que as resolvam entre si e com a consciência ética, e às vezes até moral, de cada um e uma. (Breve parêntesis para dizer que a moral incorpora as regras que temos de seguir para vivermos em sociedade e determinadas pela própria sociedade; a ética reflete sobre as regras morais e essa reflexão pode inclusive contestar as regras morais vigentes, entendendo-as, por exemplo, como ultrapassadas.)
Não esquecendo a frase de Voltaire, ela aplica-se a este tipo de jogada, que pode fazer ganhar tempo mas não ganhar o jogo. Para defender o grupo, o interesse particular, a batotice impedirá o batoteiro de agir na tal prossecução do objetivo final, de legislar no sentido de que o bem e interesse públicos sejam defendidos, atirando para uma outra jogada possível, o referendo, que tem no entanto condições que dificilmente a tornam jogável agora. E isto não é ganhar o jogo, porque este não é o objetivo final do jogo da democracia como esta foi instituída.
Entretanto o vazio mantém-se, e os direitos das crianças não se cumprem. Relembro, para terminar, o ponto dois do artigo terceiro da declaração universal dos direitos da criança: «os Estados Partes comprometem-se a garantir à criança a proteção e os cuidados necessários ao seu bem-estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais, representantes legais ou outras pessoas que a tenham legalmente a seu cargo e, para este efeito, tomam todas as medidas legislativas e administrativas adequadas.» Acredito que esta batotice põe em causa este princípio. E eu sou contra.
Até para a semana.

Cláudia Sousa Pereira (crónica na Rádio Diana)

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