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A QUESTÃO DO BUSTO DE FLORBELA ESPANCA (2)

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No dia 14 de Dezembro de 1930, seis dias depois da morte de Florbela Espanca, o Dr. Celestino David, poeta e fundador do Grupo Pró-Évora, do qual era também presidente, defende nas páginas do "Diário de Notícias" , a ideia de se prestar uma homenagem nacional à poetisa alentejana, erguendo-se um monumento em sua memória. 
A sugestão encontra eco no grande diário lisboeta que no dia 25 de Janeiro de 1931 abre uma subscrição à escala nacional para a construção de um busto destinado a perpetuar o seu nome e a sua obra. A comissão dinamizadora da iniciativa é constituída pelo seu jornalista principal e repórter internacional, António Ferro - o qual dois anos após, irá dirigir o Secretariado Nacional da Informação (SNI) a convite de Salazar -, Henrique Lopes de Mendonça, Cândida Aires, Falcão Bourbon e Meneses e Fernanda de Castro, também poetisa, e mulher de António Ferro. 
Por todo o ano de 1931 o professor italiano Guido Batelli , faz sair finalmente "Charneca em Flor" que conhece duas edições em escasso lapso de tempo, a segunda das quais acrescida de mais 18 sonetos, "Juvenília", "Máscaras do Destino" e "Cartas de Florbela Espanca". A popularidade da escritora aumenta na mesma medida que o salazarismo nascente e a Igreja temem o efeito deste fenómeno, que compromete a imagem e o papel da mulher no futuro do país, modelo que já se encontram formatando.
O sucesso da subscrição, que em espaço de tempo relativamente curto, consegue reunir os fundos necessários para a execução do busto, adensam-lhes as preocupações. Incumbido de esculpir a peça, o artista Diogo de Macedo, termina-a em 1934. O "Diário de Notícias" oferece-a ao Grupo Pró-Évora para que a coloque numa das principais praças da cidade. 
A partir deste momento vai iniciar-se a mais infame perseguição de que Évora guarda memória em tempos modernos. O Grupo Pró-Évora vê rejeitados pelas autoridades civis e religiosas todos os lugares propostos para implantação do monumento. A Santa Inquisição estava de regresso. Florbela só não foi condenada a morrer na fogueira porque já tinha sido queimada na pira da vida. Tudo se inventou e argumentou para que o busto não fosse exposto em lugar visível. 
Na imprensa conservadora a cruzada contra Florbela e o busto era conduzida pelos diários católicos e nacionais "A Voz" e "Novidades". O primeiro tinha sido fundado e era dirigido por José Fernando de Sousa, na altura já com mais de 75 anos, natural de Viana do Alentejo, que assinava sob o pseudónimo de Nemo e era o Decano dos Alunos do Liceu de Évora. Jornalista profissional e experimentado estivera no Exército até 1898 como engenheiro militar, atingindo a patente de Tenente Coronel mas tivera de se reformar cedo «por cobardia» dado que, segundo o exigiam as praxes castrenses, por duas vezes se recusara a bater em duelo depois, de para tal ter desafiado por ofensas dirigidas a outras tantas pessoas. Tinha sido pluricondecorado pelo regime monárquico e adorava ser tratado como Conselheiro. 
Para o jornalismo trouxera as mesmas características que demonstrara como militar. Era hábil e vezeiro no insulto o que valeu ter, por uma vez. recolhido aos calabouços durante alguns meses.
Por ser turno o "Novidades" tinha por director o conhecido Monsenhor José Moreira das Neves. Em Évora o correspondente era um jovem seminarista, José Augusto Alegria, extremamente vaidoso e provocador, que se viria a cotar o arqui-inimigo de Florbela e o polícia dos bons costumes e da intelectualidade eborense. Num momento de rara abertura a Câmara ainda pensou em dar o seu assentimento à instalação do busto num local discreto do Jardim Público onde Florbela gostava de passear, namorar e poetar, mas também fora apedrejada, e ainda se fez erguer um plinto para suporte do mesmo, mas nova ordem municipal , deu o dito por não dito e mandou-o cobrir por ervas trepadeiras. A caricata contra-ordem tivera origem no provimento dado a uma queixa da Igreja, junto do Governo de Salazar que argumentava que aquela era uma obra para estar guardada num museu e não para estar num lugar público.
E assim, lá acabou o busto por ser depositado no Museu como propriedade do Grupo Pró-Évora.A Igreja porém queria a sua demolição. Só a presença de António Ferro no SNI evitou este destino para a estátua. Em 1940 Alegria termina o seu curso de seminarista e refina no vitupério sobre a poetisa. Volta à carga considerando que a vida de Florbela tinha sido um escândalo, «sujando» a sociedade portuguesa.« À excepção de alguns versos aceitáveis, talvez, os outros trespassam-se de um erotismo monocórdico que é contrário às estruturas sociais de qualquer sociedade cristã e é mesmo ofensivo do espírito da Constituição de 1933». Aos que defendem o busto acusa-os de « a querer endeusar só porque conseguiu ser mais imprudente do que nenhuma outra mulher conseguira» e isso, concluía, era agora o que faltava. 
No ano seguinte, 1941, o Liceu comemora festivamente o seu centenário e edita um número especial de "O Corvo", a sua revista, que começa a ser preparado com muita antecedência, constando que nele poderão aparecer algumas referências ao nome de Florbela Espanca, quer quanto aluna integrante do primeiro núcleo feminino da Liceu, quer na inclusão de uma nota biográfica entre os mais conhecidos Reitores, Professores e Alunos que pelo brilho da sua carreira profissional mais teriam contribuído para a história e grandeza da instituição.
A pressão da Igreja para que tal não viesse a acontecer, seria tremenda, mas não surtiiria efeito.O Reitor, António Bartolomeu Gromicho, que tinha sido professor de Florbela no Curso Complementar de Letras e sempre a apreciara pelo seu talento e ademais era na altura o presidente do Grupo Pró-Évora, não cedeu, Ele próprio e Celestino David redigiram os textos mais importantes desse número da revista que tanto êxito conheceu.
Enquanto a fome corre à desfilada pelos campos alentejanos, o contista, poeta e romancista Manuel da Fonseca vai, nesse ano, trazê-la de volta à poesia portuguesa dedicando-lhe um poema, em que a "convoca" para olhar também para a desgraça em que está mergulhada a sua querida charneca. E fá-lo assim em "POEMA PARA FLORBELA:«Charneca de toda a vida/ tolhida de solidão/névoa da água dos olhos/triste coração do coro dos ganhões perdidos em sombra que cai do céu.../». Ou o desejo expresso noutro poema que lhe é dedicado em 1943 pelo poeta, professor e pedagogo Sebastião da Gama, o poeta da Serra da Arrábida: « Hás-de voltar Florbela! Em débil haste/ por entre trigos, cresce, purpurina/ a mais fresca papoila da campina/ que só por me veres não cortaste./ Eu tenho mil anos.Sou poeta....». 
Por cá, os intelectuais começavam a reagir contra a intolerância, a estupidez e o fanatismo religioso que continuavam ainda a prevalecer, mas no estrangeiro a sua obra ia-se tornando cada vez mais conhecida, mormente no Brasil, onde começa a ser alvo de estudos e trabalhos universitários. A história da proibição do busto é referida com chacota, troça e risada.

José Frota(aqui)


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