Não há como não falar hoje em Mandela. Mesmo se há quatro dias é o que mais se tem feito no espaço público, a importância sobretudo simbólica de Nelson Mandela assim o exige.
E depois este político foi profícuo em ensinamentos vertidos em frases lapidares. Das muitas que também por aí circulam, escolhi aquela em que diz que «A educação é a arma mais poderosa que se pode usar para mudar o mundo». Porque a educação também nos é dada pelos nossos antepassados e não há como não sentir Mandela como uma espécie de avô de todos nós que viveu até ao fim, mesmo se esse fim nos surpreendeu, vou falar-vos do meu avô que também morreu assim, no fim, aos 96 anos, e que me marcou de uma forma que reconheci sempre em sua vida mas que, surpreendentemente, se me tem revelado agora, nestes últimos quatro anos, particularmente inspiradora, tendo revisitado todos os seus testemunhos com grande entusiasmo.
O meu avô, que era primo direito do José Régio e do Júlio, duas figuras maiores da Cultura portuguesa, teve o privilégio, fruto de algumas posses de uma família de burgueses que valorizavam já na altura o único património que sempre considerámos, na família e a par da família, inalienável, o do Conhecimento, de ter estudado em Coimbra, onde foi presidente da Associação Académica, e ter sido advogado. Fez parte de movimentos políticos na clandestinidade e, com alguns destes, ajudou a fundar, lá pelo Norte do País, após o 25 de abril, o Partido Socialista. Foi sempre Presidente da Assembleia Municipal de Vila do Conde, a terra da minha família paterna, desde que houve eleições locais democráticas, até que a saúde lho permitiu.
Atarefado pelas atividades profissionais e políticas, os momentos em que convivíamos, nas férias às refeições e nas quadras festivas do calendário cíclico, ouvia-nos e respondia-nos às perguntas de vária ordem e contava-nos histórias, episódios da sua vida, que ouvíamos, netos e mesmo depois os bisnetos, em silêncio com muita atenção. Pois também é isso que faz a maior parte dos avós neste mundo, assim se criem as condições para tal.
Já estaria pelos seus 70 anos, e a minha avó por perto, quando a propósito da curiosidade de um dos meus primos sobre a genealogia da família e a vontade de poder ter por lá alguma figura notável, fomos descobrindo uma história do lado da minha avó sobre brasões e títulos nos Açores, de onde seriam os antepassados, e que um tio-avô teria mandado lançar ao mar quando lhe perguntaram o que fazer com a pedra de armas da família. Espantados com estas novidades do passado da minha avó, que tinha uma enorme mágoa por não ter nunca estudado mais do que a quarta classe, logo perguntámos ao meu avô pelos seus antepassados. Resposta dele: «Plebeus puros!».
A par de outras curtas e certeiras respostas que lhe fui ouvindo ao longo da vida a propósito de maneiras de a viver, tomei-o sempre como exemplo nas ações que acompanhavam as palavras tão admiradas por tantos. E aprendi que, não descurando a nossa individualidade sobretudo na opinião que formamos e naquilo que é do foro mais privado, o bem comum que partilhamos com os outros, esse Povo em que afinal todos nos tornámos com a Democracia, é precioso. Foi esse o sentido que deu ao termo plebeu que então usara. Esse sentido de pertença a um coletivo de direitos e deveres com as mesmas oportunidades de os exercer. E esse bem comum tem de ser tratado no sentido de que nele se gerem o menor número de injustiças possível, já que a própria vida às vezes nos parece fazer algumas.
Os códigos de conduta pública, quando balizados por regras e leis onde o bom senso, muitas vezes uma equação difícil mas não impossível de encontrar, é a pauta por que todos nos devemos reger, sem exceções por arbitrariedade. Ou como costumo ouvir dizer a outro homem com quem muito tenho aprendido, a regra defende o pobre e se o que é comum for cuidado, então também o que o que é de cada um fica salvaguardado.
São os indivíduos que, normalmente com um coletivo, têm na mão essa arma poderosa que é a educação dos outros pelo exemplo que são. São raros os que, chegando a políticos ou assumindo posições de poder, tenham para além do papel de modelos da humanidade a felicidade de contribuir para alguma coisa no mundo mudar, para melhor. Nelson Mandela foi um deles. E à muito minha escala, que é a de tantos outros netos e filhos e irmãos, o meu avô também.
Até para a semana.
Cláudia Sousa Pereira (crónica na Rádio Diana)