O povo português recebe em pleno o impacte duma série de acções destiladas a conta-gotas, seguindo uma táctica de atordoamento que desfere novo golpe antes que o efeito do anterior se esgote e atingindo sucessivamente domínios diversos da vida de cada um: murro no fígado, uppercut no queixo. Nas últimas semanas e são apenas exemplos soltos, depois do anúncio dos cortes nas pensões, vem duas semanas passadas, o corte de 10% nos salários da função pública; mais duas semanas e anuncia-se que os diversos “subsídios” (suplementos remuneratórios da função pública) também serão cortados. Não tudo de uma vez, num pacote cuja enormidade se tornaria óbvia, mas sim murro após murro, deixando o adversário do “governo” que é o povo português, joelho a terra, deixá-lo ir quase até ao fim do countdown e desferindo então novo golpe. Não se trata de “improvisação” ou “incompetência, não: é táctica perversa.
Uma nossa colega socióloga, Monique Pinçon-Charlot, numa entrevista recente, afirma, a propósito do estudo em que analisou o agravamento da violência estrutural (fria, instituída), de que traduzo curtos excertos:
Pergunta : “Como se exerce hoje o que designa como “a violência dos ricos”?
“É uma violência inaudita. Que quebra as vidas, que atinge as pessoas no mais profundo dos seus corpos, do seu orgulho no trabalho.” “É uma violência (que) denuncia um processo de desumanização, uma lógica de predação, [por] uma casta que rebenta com o resto da sociedade.”
Já não é política, que pressupõe a humanidade do outro, é violência pura: a derradeira etapa antes da eliminação física (como mostrei no precedente texto, dos velhos, dos doentes, dos mais pobres).
O povo português, prisioneiro dos seus hábitos longamente incutidos que fizeram dele um obediente até à subserviência e um pacato para além dos limites da apatia, não se tem mostrado capaz de reagir de modo adequado, eficaz: colectivo.
Tem havido manifestações, umas com mais gente, outras com menos. Umas convocadas por “novos actores sociais”, outras por actores convencionais. Algumas localizadas à volta de situações particulares (expoliação por uma empresa, despedimentos abusivos, medidas autoritárias sectoriais…), outras focalizadas em questões do momento. Não me parece legítimo duvidar do empenho daqueles que em princípio podem organizar o protesto, ou acções de outra natureza. A questão é esta: uma chapa de chumbo parece ter caído sobre um povo inteiro, que se enterra nos seus espaços privados, baixa a cabeça, ou foge (120.000 emigrantes, ao que consta, só em 2013).
O governo descobriu e conserva um terrível segredo: “podemos fazer o que queremos, tudo o que queremos, ninguém será capaz de se opor”. A realidade parece dar-lhe razão. Um novo tipo de abuso de poder com toda a aparência do consentimento.
Mas algo mais grave poderá explicar o aparente “encaixe” sofredor e passivo dos golpes desferidos: é que são os mais fracos, por definição aqueles que detêm menos “capital social”, menos organizados, menos educados, mais velhos, e mais pobres em todas as dimensões da probreza que têm sofrido o maior impacto da chamada “crise”. Os 20% (ou 30%) mais pobres sofreram cortes superiores aos outros e são cortes que atingem directamente o essencial, não o supérfluo: não seria lógico que houvesse uma revolta dos párias? Tem-se acusado o “governo” de “insensibilidade social”. Ingenuidade básica. Não é esse o seu defeito, mas a sua qualidade, porque é o reverso da medalha, a sensibilidade política aguçada, o saber que os pobres são a melhor seara para colher, e não só, como cinicamente dizia o outro “porque são eles os mais numerosos”. Não. É porque, em função do acima escrevi, eles são os que menos capacidade têm para reagir. (Já o velho Marx observava que nunca é o Lumpenproletariat que age de modo revolucionário, mas sim a fracção mais forte – a “aristocracia” - da classe operária, isto no seu tempo; hoje, seria a “classe média alta”, na qual o “governo” só toca com muito cuidado).
Deles – dos mais fracos, desempregados, doentes e velhos - não tratam sindicatos, e são os que menos interessam os partidos (são os que menos votam). A principal vantagem política do desemprego é manter uma espada de Damocles por cima da cabeça de cada um que ainda tem emprego. Por isso (entre outras razões), os sindicatos estão paralizados pela constatação da dificuldade em mobilizar, os partidos políticos catatónicos, a sociedade vitrificada.
A sociedade portuguesa obviamente existe (quem diria!) mas foi, se os leitores me permitem o oxímoro, dessocializada: deliberadamente destruída. A esfera privada tornou-se estanque, as redes relacionais são moleculares, a acção é iindividual e os horizontes colectivos imperceptíveis. O sentimento de indignação, de revolta até, por mais que seja prevalente e manifestamente partilhado, não “percola”, isto é, não passa de ponto em ponto para alagar o colectivo. Cada cidadão ou cidadã define uma esfera de acção que dificilmente inclui a extensão do âmbito à acção colectiva. Como gotas numa superfície não “molhante”, os indivíduos vivem a sua frustração no modo infeliz da solidão. Nem menos inteligentes nem menos capazes que quaisquer outros, os Portugueses vivem a herança do fascismo, sem o saber: não têm sociedade civil, sobrevivem num arquipélago do medo.
E entretanto, surge uma nova realidade, que se rege pela mesma lógica do minúsculo e do disperso. Mas permanece por ora, no meu fraco entender, a da quebra individual, a do desespero ou da agressão isolada. Por ora, sim, forçosamente isolada.
Já veremos…
José Rodrigues dos Santos,
Antropólogo, CIDEHUS Universidade de Évora e Academia Militar
Évora, 19 de Novembro de 2013.