Poesia
De Amor nada Mais Resta que um Outubro
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
in “Poesia Completa”
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
in “Poesia Completa”
Prosa
"08 de Outubro de 1974
No raciocínio arranjadinho de um alcoviteiro nórdico da revolução, coloco uma inquietante varejeira. Mais um espécime da cretinice itinerante que vasculha nas revoluções ideais de preço único para os vender no "pronto a vestir" do seu jornal.
Sou frequentemente incomodada por estes libidinosos da catástrofe. A coluna que mantenho em A Capital recomenda-me, mercê de umas poucas análises certeiras (como se mérito houvesse em ver através da transparência!), à bisbilhotice destas comadres das maleitas internacionais. Tento explicar-lhes que não sou especialista em matéria tão desimaginativa e que se nela meto as mãos, maiormente me move a recusa de sucumbir à intimidação que no silêncio ou no pacto aviltante encarneira o grosso da nossa intelectualidade.
É precisamente sobre esta alarmante omissão dos nossos escritores que o tal repórter vem procurar quem ao seu sono não quer levar o pesadelo de não se exceptuar a tão degradante regra.
Ouço-o:
- Dantes não havia liberdade de expressão. O silência era compreensível. Mas agora que podem livremente exprimir as suas opiniões, porque se retraem os intelectuais num mutismo tumular?
Lanço-lhe a varejeira que põe em barafunda os esquemas simplistas do meu interlocutor:
- O caso é que não saíram e jamais serão capazes de sair do túmulo da autocensura. E sabe porquê? Porque, ao contrário do que se pode pensar, dantes havia liberdade de expressão.
É a altura de o insecto lhe picar as ideias ao ponto delas lhe abrirem desmesuradamente a boca para fugirem a tão insidiosa mordedura.
- Liberdade de expressão?! Nunca ouvi tal coisa.
Prossigo:
- Mas é preciso dizê-lo e acrescentar que a censura fascista foi o paraíso terrestre dos que não tinham liberdade interior. Mantenho que havia liberdade de expressão para quem quisesse correr os riscos de exprimir a sua liberdade interior. Riscos, sublinho. Fugir a eles pelo corredor sombrio da autocensura é tornar a coerção suportável. Auto-exaltação repugnante do vitimismo. Entendamo-nos. Não minimizo os malefícios da tirania censória. mas também não absolvo a sua cúmplice maior: a autocensura. A automutilação da liberdade íntima da maioria dos nossos escritores alimentou o monstro que continua a cravar as garras nas suas mentes. No fundo, a sua consciência continua a obedecer ao diktat fascista reincarnado na marxocracia do novo campo autoritário.
Colhido pelo desaforo da minha concepção de uma liberdade de expressão comportando riscos, o nórdico quedou-se abanando as ideias coladas por esse academismo democrático que chega a fazer da democracia uma chantagem sentimental sobre a liberdade de se chamar zarolho ao zarolho. A democracia exige que se lhe chame estrábico.
- A liberdade de expressão - insistiu a escandinava beatitude democrática do repórter - não pode conhecer riscos. E, matematicamente contente com a evidência da conclução: - Logo, não houve liberdade de expressão durante o fascismo.
A partir daqui condeno-me ao isolamento das minhas reflexões. Como convencer um democrático de que a liberdade de expressão é um truque burguês com que a democracia, para satisfazer o seu economismo insaciável, assalaria as piores submissões? A adaptação democratizada do homem à liberdade, eis a oferta alienante da hipocrisia humanista do poder democrático. Ora eu não sou livre enquanto uso uma liberdade que me é estipulada. Sou-o, sim, se fruir uma liberdade adaptada a mim, aos imperativos da minha subjectividade. Nenhuma máquina do poder o consente. Exprimir a minha vida individual é então um risco permanente. A repressão fascista procura a sua lógica no interior dos seres que, sob qualquer signo, se submetem à tirania. E convenhamos que tacitamente abriu as suas malhas ferozmente fechadas aos escrevinhadores das bagatelas marxizantes do realismo socialista que mercê desta aliança invisível com o fascismo pôde instaurar a ditadura do seu estilo nas letras. Nada de espantar este pacto inaparente se pensarmos que o neo-realismo se colocava numa perspectiva de coacções e neste sentido agradava ao poder fascista. Como não havia o fascismo de permitir a exteriorização desta esterilidade do valor individual sacrificado à aceitação absoluta do poder?
Quanto à coerção da norma democrática tira esta a sua força da "liberdade permitida" que sujeita o homem à tirania da mediocridade colectiva. O exercício interior da necessidade vital criadora de não nos submetermos à liberdade tolerada, eis a mola que, incontrolável pelo Estado, levanta o dedo para protestar. A tesoura da censura fascista corta-o? Perdi alguns dedos, é certo. Mas não a minha liberdade. Fugi ao maior risco: o de apodrecer no campo de concentração interiorizado da autocensura. Os que se suicidaram no escarrador da autocoacção aliada do Estado repressivo salvaram os dedos. Cinco pontas inertes da sua interioridade gangrenada. Que poderão escrever se não o pus da submissão a um novo dono?
Não, meu caro produto escandinavo do beatério das liberdades democráticas. Por mais que o assuste, mantenho: a liberdade de expressão negada pelo fascismo mas tomada por uns rarosextravagantes que se recusaram a introverter a inexistência foi o risco menor que correram aqueles que hoje escapam às garras da nova opressão. Considero-me entre estes extravagantes. O que me dá o direito de o chamar imbecil."
(Não Percas a Rosa - Diário e algo mais (25 de Abril de 1974 - 20 de Dezembro de 1975), Lisboa, 1978, Dom Quixote)