المونا ليزا السورية
The Syrian mona lisa
Le Syrien jaconde
designed by Wissam Al Jazairy
(Leitura crítica do texto que convoca a "Vigília pela Paz na Síria", 7 de Setembro de 2013 das 21 às 23h na Igreja de São Vicente (Largo de São Vicente), Évora )
Leio e comento linha a linha o documento que convoca uma "vigília para a paz"
"Milhares de mortos, dois milhões de refugiados, dezenas de milhares de feridos. O uso de armas químicas e de destruição maciça. A guerra e a morte que ela gera. É este o cenário que se vive, desde há dois anos, na Síria."
Como poderíamos omitir o facto que o início desta guerra civil foi a terrível repressão das manifestações pacíficas de Deraa, de Homs, etc.? Este "cenário" / análise é curto e falso. Com efeito:
"O uso de armas químicas e de destruição maciça": mas quem são os detentores dessas armas e quem as utilizou contra a população civil?
Os Estados Unidos anunciaram uma intervenção militar para “punir” o regime sírio pela utilização de armas químicas.
"Cada vez menos, é aceitável que se regularizem os conflitos com recurso à guerra e à violência."
"Aceitável", nunca foi, no plano dos princípios. Mas como se resolveram os conflitos entre os povos colonizados e os colonizadores, entre os quais Portugal? Pela guerra. Lamentável? Sem qualquer dúvida. Mas se os pedidos de negociação por parte dos movimentos de independência desde 1949, 1956 (com mediação do Papa), 1960, esbarraram com a recusa dos regime de Salazar, como fazer? Uma vigília em Luanda? Ou em Lisboa?
"Nós, cidadãos eborenses, recusamos este caminho."
Têm todo o direito. Mas com os crimes que continuam a ser perpetrados no terreno, os milhares de mortos cada semana, a violência extrema dum regime que nada parece fazer hesitar, o que propõem? A sério?
"Condenamos a violência e a violação dos direitos humanos exercida por todas as partes":
Bem, "todas as partes" quer dizer que vítimas e carrascos estão no mesmo plano? Que a violência da repressão militar com armas pesadas, os bombardeamentos aéreos sobre as cidades, são comparáveis à violência dos combatentes revoltosos?
Em todas as guerras, pode haver dois "lados", e cada uma das partes deveria coibir-se de praticar crimes de guerra, ok. Mas então no Vietname, a destruição das florestas e das terras agrícolas e das aldeias com o "Agente laranja" (o 245DT), é equivalente aos ataques do Vietcong às bases americanas? e quando houve (como houve) tortura dos prisioneiros americanos, o que é condenável sem reservas, isso permite-nos colocarmos-nos num assento no céu, de morigenar as "duas partes", ignorando a diferença com a tortura a grande escala exercida sobre as populações?
"e consideramos que apenas o diálogo e a negociação abrem portas para a liberdade e para a construção do futuro."
Que a negociação seja o melhor meio, necessária e urgente, é óbvio. E se uma das "partes", precisamente a que detém um poderio das armas completamente desproporcionado em relação à outra, em suma o Poder de Estado, recusar negociar (que é o que faz Bachar al Assad)? Como se faz? Pede-se o diálogo?
"Há muito tempo que esta é a nossa opção e temos estado sempre disponíveis para nos juntarmos a todos os que tenham também esta visão do mundo: um mundo de paz, em que os conflitos se resolvem através do diálogo e da mediação internacional e não com recurso à violência e a soluções bélicas."
Partilho essa visão: esse seria o mundo ideal. Mas quando os meios que indicam não funcionam? Continuamos a observar, lamentando muito, o esmagamento dum povo por um louco assassino?
"No dia 1 de Setembro, no dia seguinte ao anúncio por parte de Obama de que iria intervir militarmente na Síria “por se ter confirmado o uso de armas químicas”, o Papa Francisco marcou uma vigília de jejum e oração pela paz na Síria e no Médio-Oriente, no próximo sábado, dia 7. Pediu às partes em conflito para encontrarem a via do diálogo e da negociação, lembrando que a guerra não leva à paz."
O Papa está no seu papel. Mas não é verdade, simplesmente, não é verdade que "a guerra não leva à paz". Por vezes (e veremos exemplos - vossos), é necessária a guerra para impor a paz. Triste, mas verdadeiro.
"De facto, depois de no século XX termos tido as guerras mundiais com o nível de violência e destruição que levou à criação da ONU por se ter compreendido que a violência não é resposta para a violência, antes a faz crescer formando a “espiral da violência”;"
Eu diria: depois de se constatar, século XX, que a guerra é a pior de todas as soluções, mas pode ser tornada necessária (como foi o caso contra o nazismo), a ONU nasce para tentar esgotar primeiro todas as outras soluções. Mas não consegue, como já a Sociedade das Nações também não cnoseguiu evitar a II Guerra Mundial.
"do trabalho de pessoas como Ghandi, Martin Luther King, Mandela e da força do Movimento por Timor terem levado a encontrar soluções duradouras e de reconciliação e diálogo;"
Ghandi não apregoava a violência; mas os movimentos que se reclamavam do seu pensamento, e que ele aprovou e encorajou, lutaram de modo violento contra a opressão britânica. Com milhares de mortos e feridos em manifestações e com accções de guerrilha. Isto tem sido esquecido a favor duma visão simplificadora e angélica da guerra de libertação da Índia: uma guerra.
"das intervenções no Afeganistão e no Iraque terem, de novo, provado que a força e a violência não resolvem os conflitos, agravando-os exponencialmente;"
De que intervenções no Afeganistão fala? Da URSS em 1979? da Nato em 2001 e até agora? No Iraque, em 1992 (necessária), ou em 2003 (criminosa)?
"como homens e mulheres de paz, acreditamos que esta iniciativa contra a guerra e a favor da não violência devia congregar-nos a todos. Todos juntos no mundo inteiro podemos ter força, homens e mulheres de boa vontade, cristãos e não cristãos, crentes e não crentes!"
Gostaria de acreditar que essa não-violência serve para algo mais que para nos dar boa-consciência. Mas isso vai parar o regime de Assad?
"Sentimo-nos convocados a dizer basta à violência que provocou milhões de mortos e 2 milhões de refugiados".
Mais uma vez se fala de "violência" em abstracto sem designar os responsáveis? É como se todos tivessem a mesma responsabilidade, vítimas e carrascos? Onde está a moral dessa posição "simétrica"?
"Sentimo-nos impelidos a agir e ao mesmo tempo tão impotentes para uma acção eficaz!"
Sim, essa impotência é de facto terrível.
"Da Síria, já veio uma resposta do grão-mufti sunita, que acolheu com entusiasmo o apelo de Francisco e manifestou a intenção de marcar presença em Roma para poder participar no próximo sábado."
Acho bem, porque não? tudo o que possa chamar a atenção para o horror, será bem-vindo. Mas atenção: não há equivalência entre vítimas e carrascos.
"“Trata-se de participar na mobilização geral da luta pela paz: é a vida da humanidade que assim estaremos defendendo, esta de hoje e a de amanhã, que talvez se perca se não começarmos a defendê-la agora mesmo”, José Saramago"
Ai, o Saramago! Foi por essas e por outras que em 1956 aplaudiu o esmagamento da revolta popular de Budapeste pelos tanques soviéticos - pela paz?
Que em 1968 aplaudiu o esmagamento da "revolução de veludo" pelos tanques russos em Praga e nas outras cidades - pela paz?
Que em 1979 justificou a invasão do Afeganistão pelas tropas soviéticas? Pela paz? Etc.? Etc.?
Ah, o Saramago, grande referência da PAZ, da Não-Violência, dos ... direitos humanos!
(...)
Não, infelizmente, não penso que as democracias ocidentais tiveram razão em Setembro de 1938, ao dar ao Hitler carta branca para invadir a Checoslováquia? Foi o "partido pacifista" (que congregava nações democráticas e partidos de todas as cores políticas) que "ganhou": "evitámos a guerra!", gritou Camberlain ao regressar de Munique a Londres. Não evitaram a guerra e perderam toda a dignidade.
1939: Polónia; 1940, França, etc.
Claro, a negociação é o melhor caminho! Mas se o agressor só "negoceia" para ganhar tempo e continua os seus planos? E depois? Pétain, 1940, quis "evitar os horrores da guerra aos Franceses", e deu a França aos nazis. Mas não evitou a guerra e perdeu toda a dignidade.
Estaline negociou com Hitler e planeou a partilha da Europa entre Alemanha e URSS, assinando um tratado de não-agressão (Molotov-Ribbentrop, Agosto de 1939), para evitar a guerra. a URSS foi invadida em Junho de 1941 (Saramago, amigo de Molotov, sabia dessa partilha: disse algo?). Devia a URSS ter renunciado à guerra, e entrar em diálogo (de novo)?
A guerra, meus caros amigos, é um mal terrível. Tomara que continuemos a poder preservar-nos contra ela. Mas há guerras necessárias, e há guerras justas. Essas têm que ser decididas, e têm que ser ganhas.
A realidade do nosso mundo ainda não é a do mundo ideal que desejaríamos. E é no mundo tal qual é, que temos que agir.
José Rodrigues dos Santos,
5 de Setembro 2013, Évora