Nos últimos dias li dois livros diferentes, debruçados e construídos sobre dois cenários distintos, mas assentes na mesma realidade tenebrosa que manchou de sangue várias décadas do século XX – o totalitarismo, fosse ele de raiz nacional-socialista ou de carácter marxista-leninista.
Existindo diferenças entre ambos, os dois modelos de organização social representam um tipo de sociedade assente no poder do Estado (e dos grupos que dele se apoderaram) e na destruição daquilo que é único e inalienável em cada um de nós – a individualidade.
Havendo mais traços em comum, bastava isto para os tornar similares. São regimes de terror, em nome de ideais futuros em que os “fins”(desde a “raça ariana pura” até “aos amanhãs que cantam”) justificam todos os meios. E um dos meios é o do medo e o da destruição do indivíduo, enquanto ser único, primeiro passo para destruir o grupo, a“raça” ou a “classe” de pertença, sublimemente descritos por Primo Levi (que o viveu – e de que forma! – em Auschwitz) e por Vladimir Zazúbrin, um escritor soviético, membro do PCUS, e presidente da União dos Escritores Siberianos, que escreveu uma novela profundamente realista sobre a primeira polícia política pós-revolução, “O Tchekista”.
São dois testemunhos escritos a sangue. Primo Levi pôde escrever o seu “Se Isto é um Homem”porque foi libertado do campo de concentração de Auschwitz pelos soldados soviéticos, dirigidos por Stalin, ele próprio responsável pelo degredo, tortura e morte de milhares de correligionários seus – entre os quais Vladimir Zazúbrin, cuja novela (escrita em 1923) só foi publicada pela primeira vez em 1989, depois da queda do muro.
Escreve Vladimir Zazubrin: “É necessário organizar o terror de tal maneira que o trabalho do carrasco executor quase se não distinga do trabalho do dirigente teórico. Um disse que o terror é necessário, o outro carregou no botão da máquina automática de fuzilar (…) No futuro, a sociedade humana “esclarecida” livrar-se-á dos seus elementos supérfluos ou criminosos por meio de gazes, electricidade, bactérias mortíferas”.
Duas décadas depois este “sonho” bolchevique e tchekista era realizado pelo nacional-socialismo alemão, nos campos de extermínio e morte. O tiro na nuca às dezenas de executados diariamente pela Tcheka foi substituído pelos milhares de gazeados dos campos de concentração nazis.
“A notícia chegou, como sempre, acompanhada por uma auréola de pormenores contraditórios e suspeitos: hoje mesmo de manhã houve selecção na enfermaria: a percentagem foi de sete por cento do total, de trinta, de cinquenta por cento dos doentes. Em Birkenau, a chaminé do Forno Crematório fumega há dez dias”, escreve Primo Levi.
Num e noutro tempo histórico, o objectivo é o mesmo: destruir o que há de individual em cada ser humano. Os presos eram obrigados a despirem-se e a esperarem, nus, a morte. Para a humilhação ser maior.
Escreve Vladimir Zazúbrin, no Tchekista, “em França, havia as guilhotinas, as execuções públicas. Entre nós, há a cave. A execução secreta. As execuções públicas envolvem a morte do criminoso, mesmo do mais perigoso, numa auréola de martírio, de heroísmo. As execuções públicas fazem publicidade, dão força moral ao inimigo. As execuções públicas deixam aos parentes e amigos um cadáver, uma sepultura, as últimas palavras, a última vontade, a data exacta da morte. É como se o executado não fosse completamente destruído. A execução secreta, numa cave, sem quaisquer emoções exteriores, sem anúncio de sentença, a morte súbita, tem nos inimigos um efeito esmagador. Uma máquina enorme, impiedosa, omnisciente que agarra inesperadamente as suas vítimas e as absorve como uma picadora de carne. Depois da execução não se sabe o dia exacto da morte, não há últimas palavras, nem cadáver, nem sequer sepultura. É o vazio. O inimigo é completamente destruído”.
Duas décadas depois escreve Primo Levi no seu Se isto é um Homem:“Então, pela primeira vez nos apercebemos de que a nossa língua carece de palavras para exprimir esta ofensa, a destruição de um homem. Num ápice, com uma intuição quase profética, a realidade revelou-se: chegámos ao fundo. Mais para baixo do que isto não se pode ir: não há nem se pode imaginar condição humana mais miserável. Já nada nos pertence: tiraram-nos a roupa, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão e, se nos escutassem, não nos perceberiam. Tirar-nos-ão também o nome: se quisermos conservá-lo, teremos de encontrar dentro de nós a força para o fazer, fazer com que, por trás do nome, algo de nós, de nós tal como éramos, ainda sobreviva”.
Os crimes contra a humanidade praticados pelo nazismo foram julgados em Nuremberga. Os crimes praticados pelo marxismo-leninismo, como ideologia de terror e morte (União Soviética, China, Cambodja, Coreia do Norte, alguns regimes africanos…), estão a ser julgados todos os dias pela humanidade. O ódio e o terror contra uma raça (judeus, negros, ciganos) ou contra um qualquer inimigo (de grupo, classe, ideologia) não são diferentes e estes dois livros retratam-no de forma eloquente.