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Outra cidade?

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Praça do Giraldo, 1974 (foto Carlos Tojo)

1ª parte: aqui

2ª parte:  A "esquerda" contra a "esquerda": uma esquizofrenia eborense.

Portugal acordou em 1976, com as eleições, num estado de fracturação como nunca tinha vivido. Cada fracção com uma ressaca diferente dos três “25 de Abril”. Os partidários, defensores, os cúmplices do antigo regime, os que admitiram e se calaram, o partido negro, afundaram-se num profundo rancor contra o novo regime. No Norte, miseráveis tentativas de padres bombistas e veleidades de desencadeamento de guerra civil, depressa esgotadas pela dispersão das forças e dos motivos. Em Évora, o partido negro era a vítima da “reforma agrária”, das ocupações de herdades (“Roubaram-nos as terras!”, dizia uma figura notável de entre muralhas) e como vítima se via. Latifundiários recrutando ex-comandos das findas guerras coloniais (perdão, “guerra do ultramar”), para se oporem, com armas de guerra, aos grupos de rurais organizados quase militarmente pelo PCP, pequena burguesia comprometida com a máquina salazarista a apanhar chapéus. Capacidade política zero (que esta era a gente que “não fazia política”), desmoronamento social. Reduzidos ao silêncio, os que eu chamo o “partido negro” viveram o“25 de Abril” como uma catástrofe política, decerto, mas sobretudo moral: o fim dum mundo. Outro“25 de Abril” perdido foi o dos comunistas. Para eles, logo a seguir e ainda hoje, as “promessas”, o “sonho” do Abril deles, que era a instauração dum regime de tipo soviético, foram amargamente desmentidos pela realidade dum país que não queria (nem quer) tornar-se um paraíso de tipo cubano, bielorusso ou coreano. O terceiro Abril foi o dos socialistas. Esse vingou: o projecto era acabar com as guerras coloniais e instaurar um regime liberal-democrático. Não, como depressa se verá, social-democrático. Ao colocar “o socialismo no saco” o pai do novo regime, Mário Soares, ia no sentido do possível (e portanto do poder): eleições livres, multipartismo, estado de direito, economia de mercado, liberalismo económico. Para o PS, o 25 de Abril venceu, as promessas foram cumpridas, o essencial preservado (a liberdade).
Os três “25 de Abril” são rigorosamente incompatíveis. Contudo enquanto a oposição entre os saudosismos do antigo regime e os dois outros eram por assim dizer “naturais”, porque se opunham classes e meios sociais com interesses claramente divergentes, numa configuração clássica “direita” (“burguesia”, patronatos, etc.) contra “esquerda” (“classes trabalhadoras”), o antagonismo entre comunistas e socialistas era traumático e permanece insanável: no interior duma certa noção de“esquerda”. Ao nível do país, o que se observou foi uma triangulação, com os pesos de cada sector a variar entre maiorias absolutas (raras) e maiorias relativas bastante instáveis. Tendo o PC perdido mais de metade dos seus votos (em relação a 76), a confrontação ao nível nacional depressa se estabilizou em “esquerda contra direita”.
Évora fez figura de excepção. A predominância comunista não encontra rival de peso à direita (como já disse, uma direita moralmente desfeita, que só nos últimos anos conseguiu uma impiedosa desforra). O inimigo principal é o PS. O PS é para os comunistas o partido da “traição”, e complementarmente, o partido dos “traidores”. O partido que apoiou o principal acto traumático para os comunistas, o “25 de Novembro”, não hesitou em servir-se dos apoios externos e até da CIA, “traiu” e liquidou a reforma agrária, e trai os “ideais socialistas” ao aceitar “meter o socialismo no saco”. E adicionalmente, partido dos “traidores”: todos aqueles que ao fio dos anos foram expulsos, com as seriíssimas razões que se sabe, do PCP, ou que o abandonaram por discordâncias graves e foram aderindo ao PS, são vistos, ainda hoje como os que atraiçoaram “O Partido”. Muito haveria a dizer quanto à influência destes apóstatas da religião soviética e quanto à cultura política e partidária que consigo transportaram para o PS: formados nas escolas“do Partido”, formatados para uma certa cultura organizacional, muitos deles fizeram do PS um PCP sem ideologia fixa, no qual o poder nu e cru se torna a única razão de lutar.
O antropólogo René Girard afirma que as lutas mais mortíferas e mais impiedosas são as lutas fratricidas, movidas pelo desejo mimético. Formulado na base como “o desejo de ter o que o outro tem”, o desejo mimético é mais rigorosamente o“desejo de SER o que o outro é”. Évora não assiste ao desenrolar dum esquema clássico, saudável, de “esquerda contra direita”, em que os ideais são diferentes e os interesse incompatíveis, em que o outro é mesmo Outro. Évora assiste impotente à instalação dum jogo mimético em que cada um dos dois contendores pretende ser o verdadeiro detentor dos valores comuns (liberdade, justiça social, progressismos em geral), acusando o outro de ser falso, mentiroso, de roubar as palavras desvirtuando-as.
Para o PS (o tal que o PCP acusa de todas as traições), o partido comunista não é um partido democrático; concorre às eleições e acata os resultados, porque não tem outro remédio. Para o PS, o PCP não renunciou a nada do que faz a ideologia totalitária comunista, essa mesma de que o seu querido líder cujo centenário agora comemora, foi um parceiro, adepto, colaborador sincero e inebranlável para além da queda dos regimes soviéticos e até ao fim (da sua vida). O PCP, que continua a convidar para os seus congressos tudo o que há de mais notoriamente ditatorial e esgotado (os “países irmãos” e os“partidos irmãos”), não é, para o PS, um parceiro possível de alianças ou coligações. Num certo sentido, o PS considera que o PCP não é de esquerda, as ditaduras não podem ser de esquerda, os inimigos da liberdade são a forma essencial da direita. A “esquerda” são eles, no PS, porque a esquerda é defensora das liberdades e não apenas formais. E ao nível nacional, embora certas fracções socialistas (olha: “soaristas”!) lancem na contenda a ideia duma coligação à esquerda (entenda-se PS+PCP+BE), as correntes dominantes do que quer que o PS se tenha tornado consideram o PCP simplesmente irrelevante (quase tanto como “partido dos Verdes”, essa ficção), por fossilização política irreversível.
Mas o PCP há muito considera que o PS deixou de ser um partido de esquerda, que se diz de esquerda para aplicar políticas de direita, etc.: também ele pensa - aliados? Nunca! Seria perder, como diz Jerónimo, “a sua identidade”. Se assim não fosse, tendo os dois partidos cada um 3 vereadores, não teriam podido cooperar? É o contrário: o quase equilíbrio de forças fez do último mandato um inferno, uma guerra civil simbólica, bloqueando sempre que possível a situação: sujar as mãos cooperando, nunca. 
Enquanto a nível nacional as negociações entre PS e PCP nunca passaram de meras demonstrações de “abertura” para eleitor ver, em Évora o ódio mimético divide a sociedade em dois blocos irredutíveis. 
Não é pois de rivalidade política normal que se trata, mas sim, sublinho, de ódio mimético: “eu é que SOU o que tu dizes que ÉS”. O clima social, cultural, político, ficou totalmente atascado neste dilema. 
Só a emergência duma terceira força (e/ou duma quarta força) poderia separar os contendores, ambos obcecados pelo “outro”. Com esta configuração, Évora não sai das areias movediças em que caíu. Um contra um, parou o tempo. Só pelo menos “dois contra um” (o que pressupõe que haja três), oferece abertura: A+B / C; A+C / B ; B+C / A, etc. Mas essa abertura pressupõe que em vez de princípios intangíveis, quase religiosos e portanto indiscutíveis, os parceiros se orientem em função de objectivos concretos, de projectos comuns, contingentes, definidos de modo pragmático e com alianças variáveis. Segundo opções de base que bem lá no fundo, nem por serem diferentes deveriam ser incompatíveis. 
E creio que os principais estragos causados por este esquema durante os últimos 35 anos consistem em tornar o espaço público irrespirável, instaurando, como escrevi para começar, uma cultura do Medo, onde a maior prudência se impõe quando se trata de se exprimir em público: calcular bem as represálias que uma frase, uma foto, uma participação numa manifestação (cultural, social, política), um “ser visto com”, podem desencadear. Aqui “Tudo o que disser poderá ser utilizado contra si”,é o lema dum espaço que, na impossibilidade de ser de todos, se tornou espaço de ninguém.

José Rodrigues dos Santos,
Évora, 26 de Agosto de 2013.

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