Deve ser da idade, mas cada vez mais olho para o que me rodeia como duas semiesferas antagónicas. De um lado os que deixam escapar milhares de milhões de uma moeda qualquer para um paraíso fiscal e os que se indignam com a possibilidade de tal migração financeira poder resultar numa gigantesca fuga ao pagamento de impostos, sem se atreverem a questionar o essencial: como é possível que toda essa riqueza criada esteja nas mãos de uma ínfima minoria à custa do trabalho de uma imensa maioria?
Curiosa e aparentemente parecem estar em lados antagónicos mas, de facto, não estão. Aqueles que se indignam com a possibilidade da existência de uma fuga ao pagamento de impostos e não conseguem ir mais além e levar a sua indignação ao essencial, porque questionar a possibilidade de meia dúzia acumularem uma tal riqueza, seria questionar a liberdade que lhes é mais querida, estão de facto no mesmo lado.
Apesar das diferenças de linguagem, de maior ou menor exaltação, formalmente estão de acordo quanto à ilegalidade da fuga aos impostos. Concordam ainda que devem ser encontrados mecanismos de controlo mais apertados, embora divirjam sobre o seu alcance. Nenhum questiona a existência da possibilidade de alguns conseguirem acumular milhares de milhões, de uma qualquer moeda, num país onde o salário mínimo é de pouco mais de quinhentos euros e a esmagadora maioria do tecido empresarial é composto por pequenas e médias empresas, que sobrevivem com as dificuldades inerentes a quem vive num país onde a maioria dos que vivem do trabalho vive em modo de sobrevivência.
No outro hemisfério estão os que entendem que com uma outra distribuição da riqueza produzida, os milhares de milhões não emigravam e a maioria vivia muito melhor. Os que acham que é urgente um outro paradigma de sociedade, onde os interesses públicos e privados não coabitassem, numa promiscuidade de que temos exemplos diários.
Neste hemisfério não há meias tintas nem panaceias, que fingem controlar sem questionar o essencial, como se bastasse a via fiscal para o exercício da redistribuição da riqueza. Como se, em valores relativos, dez por cento de mil não fosse mais que cinquenta porcento de um milhão.
Alguns que ainda me estão a ouvir pensarão que hoje me está a dar para o radicalismo. É exactamente o contrário. Hoje está a dar-me para o bom senso. Radicalismo é defender que toda a origem da riqueza fica legitimada, desde que se paguem impostos.
Há radicalismo mais duro que conseguir defender a desigualdade aberrante em que vivemos como uma inevitabilidade inerente à condição humana?
Perguntarão alguns, mas então e a tal mão invisível que tudo modera e redistribui? Não faço ideia por onde anda, mas suspeito que anda a tratar dos interesses de quem a inventou.
Dois hemisférios antagónicos. E quem pensa que consegue mudar o primeiro por dentro tornando-o mais “humano” ou com um “rosto mais humano”, como dizia a social-democracia antes de se render às virtudes do liberalismo, só pode padecer de ingenuidade galopante.
Já sei, e os que estão no outro hemisfério acreditam em amanhãs que cantam e num homem novo e tudo isso não passa de uma utópica ilusão.
Prefiro correr atrás da utopia de hoje, que poderá ser a realidade de amanhã, do que aceitar ingenuamente que quem acumulou dez mil milhões de qualquer coisa, desista de acumular riqueza para a distribuir voluntariamente por quem a produziu, apenas para dar um “rosto mais humano” à coisa.
Significa isto que a luta é de tudo ou nada? Nem pensar. Todas as oportunidades devem ser consideradas, todas as pequenas batalhas devem ser travadas.
Desculpem lá a minha falta de independência, mas é isso que o Partido que comemorou no passado dia 6 de Março noventa e seis anos, anda a fazer desde que foi fundado.
Até para a semana
Eduardo Luciano (crónica na radio diana)