Mais uma vez na América reerguem-se temas de discussão que, nunca tendo desaparecido, têm tido momentos mais sossegaditos. E aqui no jardim à beira-mar plantado voltaram na modalidade boutade de rede social. Um deles é o racismo, termo cientificamente tão errado como anacrónica é a existência real de um conceito largamente usado de “raça”. O upgrade é a xenofobia, que até corrige de forma consensual, não esse traço de carácter que está latente em quem tem sempre debaixo da língua a expressão “não é de cá”, mas essa tendência de estender as questões de administração geopolítica a características de sociabilização, pondo em causa o velhinho conceito da ética humana que é a hospitalidade.
A laracha de que falo foi aquela largada por um fadista cujos pergaminhos de pertença a linhagem educada, uma forma de também “ser de raça” já agora, parece terem sido esquecidos. É sempre uma situação trágico-cómica quando se soltam estes desvarios de descompostura. Parece que o ódio ao politicamente correcto, que pelos vistos evitava pelo menos estas tristes figuras, chegou a quem normalmente tem a sorte de ser educado nos princípios do bom convívio em sociedade, que é o que politicamente correcto também quer dizer. Lá o que fazem depois entre eles, e desde que, se for algo de muito ruim, não contamine o resto do ambiente, é mesmo só lá com eles! À privacidade todos temos direito. Mas o espaço público é também um “salão com regras” e a sistemática quebra destas pode torná-lo um lugar muito tóxico. E que não venham com a grande dignidade do que é dar a cara de onde saem impropérios. É que há coisas que não são meras opiniões, são marcas de carácter e nem mesmo ditas olhos nos olhos têm o beneplácito de quem se preocupa exactamente com o bom ambiente desse mesmo espaço público.
Felizmente a Ciência tem evoluído de forma a deitar por terra todo o tipo de manual de argumentos que justificam atitudes de exclusão. É até uma forma de reequilibrar um mundo onde cada um pode dizer o que quer, mas onde isso não quer dizer que tudo o que se diga esteja correcto, nos vários âmbitos a que este adjectivo se aplique. Por acaso, o que destacaria do desabafo do fadista a propósito da inaudita cerimónia dos Óscares deste ano é a ofensa que é feita não à cor da pele nem à orientação sexual de actrizes e actores, para mim muito lamentável mas esclarecedor do tipo que é quem o diz, mas à própria arte de representação. Em ricochete quase me apetecia dizer que quem tem muitos SS e RR no nome também pode ser fadista, ou toureiro, ou jogador de canasta. Não o digo, por muito tentador que o estereótipo seja para fazer a laracha, porque não é verdade.
Quer as histórias bíblicas, quer as narrativas mitológicas relatam situações em que deuses ou figuras divinas testam a bondade das pessoas a partir do modo como estas exercem a sua hospitalidade. É a hospitalidade associada ao altruísmo e à bondade, tudo em nome da felicidade. E é assim que algumas pessoas têm a sorte de viver em territórios tão valorizados pelos que neles nasceram e se criaram por serem classificados como património da Humanidade. Eu cá tenho encontrado muita gente assim, hospitaleira, de muitas das poucas partes do Mundo que conheço. E desses encontros serei eu quem sai certamente mais feliz e os que assim me fizeram sentir mais altruístas e bondosos. Uma experiência a que todo o ser humano devia ter direito, o que às vezes até é mesmo possível logo que se passam fronteiras que delimitam concelhos, distritos ou regiões. Essa experiência seria sem dúvida um bom contributo para a formação, também de carácter, de muitos. O que é difícil para quem, mesmo viajando muito tem o espírito, a alma ou, como eu gosto mesmo de chamar a isso, o carácter amuralhado. Até para a semana.
Cláudia Sousa Pereira (crónica na radio diana)