Bertolucci, um dos monstros do cinema mundial, esteve debaixo de fogo recentemente, na opinião pública que fala agora mais alto do que nunca, por ter revelado com alguns equívocos como foi filmada a famosa cena de sexo entre Maria Schneider e Marlon Brando em «Último Tango em Paris». Um clássico da Sétima Arte que, já agora, aconselho.
Maria Schneider teve, como tantas outras estrelas famosas e alguns cidadãos comuns, uma vida emocionalmente instável, já fora dos palcos ou do ecrã, e que em 2007 parece ter-se justificado com esta história de não consentimento prévio de todos os detalhes de rodagem de uma cena de sexo. E a polémica - que no relato de Bertolucci diz ter sido uma intenção de espontaneidade ao não dar previamente a conhecer a Schneider o uso, chamemos-lhe assim, criativo de uma barra de manteiga nessa dita cena de sexo - cresceu para uma cena de autêntica violação grupal em que esta Maria virou cordeiro sacrificial de figuras maiores da Sétima Arte. A mim, a história destas três pessoas e os seus factos, verdadeiros ou recriados, interessam-me tanto como a vida sexual do próximo, o que quer dizer zero. O que me aguçou a curiosidade foi a manteiga enquanto metáfora, e perceber que o que tanto parece ser altruísmo, neste caso em prol da Arte e dos seus praticantes, pode, por vezes, transformar-se em, chamemos-lhe isso mesmo, sacanice nos vários possíveis significados que tem o termo. Procurei então referências a este besunto, ainda que apressadamente, e encontrei uma historieta edificante que partilho convosco.
“Conta-se que certa vez duas moscas caíram num copo de leite. A primeira, forte e valente, nadou até à borda do copo, mas como a superfície era muito lisa e ela tinha as asas molhadas, não conseguiu sair. Acreditando que não havia saída, desanimou, parou de nadar e afundou. A outra, apesar de não ser tão forte, era tenaz. Continuou a debater-se por tanto tempo que, aos poucos, o leite ao seu redor, com toda aquela agitação, se transformou num pequeno nódulo de manteiga. A mosca conseguiu, com muito esforço, subir e dali levantar vôo para um lugar seguro.” Se a história parasse aqui, esta seria seguramente um elogio à persistência que leva ao sucesso. No entanto, assim não é. “Tempos depois a mosca tenaz, por descuido ou acidente, caiu novamente num copo. Com a experiência adquirida, começou a debater-se na esperança de que, no devido tempo, se salvaria. Outra mosca, ao passar por ali e vendo a aflição da companheira, pousou na beira do copo e gritou: "Há uma palhinha ali, nada até lá e sobe". A mosca tenaz não lhe deu ouvidos, continuou a debater-se até que, exausta, se afundou no copo cheio... de água.”
Ficaríamos muito mais dos que os aproximadamente três minutos de uma crónica a discutir as diferentes lições a retirar da historieta. Poderíamos ainda gastar muito mais tempo a substituir as moscas e os copos por pessoas e situações (auto)biografáveis. E podíamos, talvez, voltar a Maria Schneider, Marlon Brando e o “deus” Bertolucci, não sem algum picante-vintage completamente enevoado por uma atenta contemporaneidade à violência doméstica como crime público. Ou até, esticando mais a conversa, sobre a possível e discutível conflitualidade entre a estética e a ética, e o quanto para apreciadores das Artes é preciso conhecer bem as suas “gramáticas”.
O que eu vou lendo nesta historieta é que circunstâncias diferentes pedem reacções e atitudes diferentes, o que não contribui para uma suposta coerência primária, mas pode constituir-se um excelente quebra-cabeças de dois sentidos: para quem tem as atitudes e para quem, usando as celulazinhas cinzentas, as saiba interpretar. Dá trabalho, mas também dá muito mais gozo.
Cláudia Sousa Pereira (crónica na radio diana)