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Uma questão de calçado

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Esta crónica é sobre a questão táxis vs Uber e companhia, um assunto que aquece aqui agora, que já pôs outras capitais de pernas para o ar e que revela vários problemas da contemporaneidade, por um lado, e da fragilidade intergeracional de algumas mentalidades, inclusivamente colectivas.
Formar opinião sobre este assunto, como de resto com outros que nos dizem tangencialmente respeito, implica “calçarmos os sapatos do outro”, uma metáfora comum, por vezes até poética, sem deixar de ser política.
O que assistimos numa suposta marcha-lenta de taxistas da passada semana foi a uma dupla sabotagem. Uma sabotagem ao trabalho de uma empresa exclusivamente privada, com fins lucrativos e sem benefícios próprios das que prestam serviço público, e que ao contrário dos táxis segue as regras do mercado, tão desregrado. Foi uma sabotagem com agressões reais a funcionários das empresas Uber ou Cabify no aeroporto Humberto Delgado. A outra sabotagem foi uma auto-sabotagem. Uma marcha que tinha um determinado percurso preparado dentro das regras, viu-se sabotada pelos marchantes que revelaram, no mínimo e para não repetir o que não devia ter nunca saído da boca de gente que lida com público, uma profunda ignorância sobre as regras básicas da cidadania, quer estas se refiram a comportamentos em sociedade quer da forma como actuam as corporações, os seus representantes e defensores nos órgãos próprios, em regimes não ditatoriais nem monopolistas.
Pareceu-me que mais do que a marcha-lenta, simbólica em várias formas de contestação que pretendam reunir simpatizantes com as causas, ficará para o futuro o efeito desta auto-sabotagem. Talvez até leve a alterações no relacionamento dos que, por várias razões e com interesses diferentes, se puseram à partida e de forma irredutível do lado dos que, afinal, só conseguiram passar a ideia de quererem continuar a ser um monopólio. E sim falo de um partido político que oscila entre princípios que umas vezes, sobretudo quando está no poder, flexibiliza e, noutros, quando representa uma espécie de acionista de quem interessa manter a quota, se mostra tão firme. Uma bota que vou querer ver como vai descalçar.
De volta ao calçado, então, importa recordar que a palavra sabotagem vem precisamente de um movimento de contestação que, para lá de todo o direito que num estado livre e democrático é até saudável que se possa manifestar, revela uma desadequação ao que, no fundo, é mesmo o interesse geral de acompanhar o progresso da humanidade, em nome de uma instalada posição conquistada. Sabotagem vem da palavra francesa sabot que designa precisamente um tipo de calçado, as socas de madeira. Os episódios que lhe deram origem têm uma interessante semelhança, com a relativa distância do tempo, com os desta marcha-lenta. É que na Europa Central da revolução industrial os trabalhadores oriundos das zonas rurais que foram trabalhar para as fábricas e se aperceberam de que a máquina iria substituir o trabalho braçal para que estavam preparados e onde ganhavam em competência usavam as suas socas de madeira para encravar as máquinas e parar a produção. Assuntos assim tratados com os pés normalmente não têm grande efeito para os que os praticam. A não ser no futebol, claro, mas até aí é preciso usar bem a cabeça.
Até para a semana.

Cláudia Sousa Pereira (crónica na radio diana)

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