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O CENTENÁRIO QUIOSQUE DO ROSSIO: SETE METROS QUADRADOS DE INÉPCIA E INSENSATEZ

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1. A situação de abandono a que está votado o centenário Quiosque do Rossio de S.Braz, é um libelo acusatório para a incompetência, inépcia e incultura que grassa em certas instituições e entidades responsáveis da cidade. Sete metros quadrados de área naquele vasto terreiro funcionam como testemunho de uma situação insólita e surreal que acabará por conduzir ao seu apodrecimento e consequente desmoronamento ou mesmo ao completo arrasamento, se ninguém for sensível à preservação de um património citadino que não se limita, ao contrário do que muitos crêem,  ao Centro Histórico e aos monumentos classificados.
O quiosque está oficialmente encerrado desde 11 de Novembro de 2009, dia em que a Conservatória do Registo Predial de Évora recusou o seu registo de aquisição por usucapião, por parte do casal Maria da Nazaré Santos Silva e António Joaquim Vieira da Silva, que o vinha explorando comercialmente desde 1984, ano em que invocam tê-lo comprado verbalmente, não tendo reduzindo o negócio a escritura pública, a Hortense da Conceição Pinto, a qual o havia inscrito matricialmente na extinta freguesia da Sé  em 31 de Dezembro do ano de 1937.
Precavendo-se para qualquer eventualidade, o casal-que tanto quanto julgamos saber pretendia realizar obras de recuperação e requalificação da pequena construção- fez uma escritura de justificação num cartório notarial da cidade e  publicou averbamento da mesma no jornal “ Diário do Sul” de 23 de Setembro de 2009, em que se declarou dono do respectivo prédio urbano, sem que tivesse sido deduzida oposição. Como documentos adjuvantes dessa posse ambos acrescentaram o pagamento de todos os impostos relativos à sua exploração desde 1984, bem como a liquidação da licença de ocupação da via pública e das despesas correntes da sua actividade como água e energia eléctrica.
Ora foi com base no pagamento da taxa de ocupação da via pública que a Conservadora do Registo Predial de Évora recusou o registo por entender  que o pagamento é indicativo de que o quiosque se encontra implantado numa zona de domínio municipal (público, portanto)  e de se « estar perante a figura do detentor ou do possuidor precário o qual não pode exercer o direito real correspondente, ou seja o registo de propriedade». Para tal invocou os artigos 68º. e 69º. b do respectivo Código que incidem sobre o princípio da legalidade do registo e sobre a sua recusa « quando for manifesto que o facto não está titulado nos documentos».
O casal Silva, inconformado, recorreu da decisão para o Instituto dos Registos e Notariado (IRN) alegando nomeadamente que «o prédio está inscrito na matriz em nome dum particular, que o pagamento da taxa de ocupação da via pública se reportava à ocupação da mesma por mesas e cadeiras, que a escritura havia sido publicada de acordo com a lei, não merecendo a oposição de qualquer entidade pública ou privada e ainda que não se conhece qualquer legislação que o afecte ao domínio público».
Ouvida para contra-argumentar a Conservadora manteve-se irredutível na sua apreciação e adiantou mesmo que o prédio se encontra implantado numa zona de dominialidade municipal destinada « à satisfação de relevantes interesses colectivos (estacionamento público) de uso directo e imediato pelo público». Acresce que enquanto já depois da apresentação do pedido de recurso, a Câmara Municipal  fez chegar à Conservatória um ofício pedindo a eliminação da inscrição matricial efectuada em 1937 por se ter tratado de um  lapso corrido na altura. Antes de nos espraiarmos em quaisquer outras considerações diremos que atentos os factos e com base na intransigência da Conservadora, o Conselho Técnico do IRN deliberou por unanimidade, em sessão de 26/5/2010, dar o recurso como improcedente.
2. Sem querer ser advogado (tem o seu e é de qualidade) das pretensões do casal Silva  ouso dizer que a argumentação da Conservadora (que não sei quem é) denota ignorância e falta de cultura local, principalmente quando invoca que o quiosque, implantado no Rossio em princípios do século XX, pertence ao domínio municipal por estar numa área actualmente afecta ao estacionamento público o não é inteiramente verdade. O Plano de Urbanização de Évora, hoje em vigor, dá o Rossio como uma área destinada simultaneamente a estacionamento público e a uso terciário pouco qualificado. Mais, na prática este prevalece sobre o primeiro dado que durante a Feira de S.João e os dias de mercado mensal não é ali permitido estacionar estando o respectivo espaço vedado. Aliás a sua utilização como zona de parqueamento automóvel é muito recente na história da cidade.
A leitura da obra de Carvalho Moniz “As feiras de Évora” permite perceber que o grande terreiro foi o local privilegiado para a realização de feiras e mercados desde 1561, sendo por isso local de ocupação breve e temporária por parte de mercadores, feirantes e comerciantes, que aí instalavam as suas tendas e barracas como ainda hoje sucede. Isto suscita desde logo forte perplexidade: o quiosque deve ter gozado de algum estatuto especial, ter sido adquirido por alguém, para ali ter permanecido por mais de um século, implantado no solo e sendo uma construção de alvenaria  de raiz definitiva, sem que a sua existência tivesse sido questionada.
Essa situação de excepção sempre me intrigou desde miúdo e já jornalista, ao serviço de “O Século”, no ano de 1970, solicitei à Câmara de então uma explicação para o facto tendo sido informado sucintamente que o quiosque era pertença de privados. Com efeito o compulsar do livro de Carvalho Moniz que dedica várias páginas ao vasto terreiro, permite  verificar que o espaço do Rossio, foi por diversas vezes alienado parcelarmente a particulares. Foi o que aconteceu, por exemplo, a 25 de Fevereiro de 1901 quando a Câmara decidiu vender quinhentos metros quadrados de terreno ao sr. António José de Sousa Potes «para aformoseamento do Rossio» dado que a respectiva Porta estava um «nojo e um escarro e era uma vergonha para a cidade de Évora». Ora é exactamente junto a esse local que o quiosque se situa e a data corresponde à aventada para a sua construção e implantação.
Segundo,o que era voz corrente na altura os terrenos terão voltado á posse do município que no entanto reconhecendo a utilidade pública daquele exíguo espaço o decidiu por à venda tendo arranjado comprador que teria sido uma mulher. De facto, quando em 1927 o Governo comete às Comissões Executivas das Câmaras Municipais a competência para licenciar hotéis, hospedarias, cafés e tabernas, a Câmara de Évora concede sem problemas o respectivo alvará ao Quiosque do Rossio, passado em nome de Joaquina de Jesus Correia. Isto ocorreu na sessão camarária de 16 de Novembro desse ano conforme o atesta o jornal diário “Notícias d´ Évora” do dia seguinte. Mas, pelos vistos, a Câmara não teve interesse em devidamente nem a Conservadora aceitou o registo provisório dando oportunidade a que uma investigação histórica pormenorizada fosse efectuada.
3. O Quiosque do Rossio foi um  dos três conhecidos  que existiram em Évora em finais do século XIX e princípios do século XX e é o único que resta na sua genuinidade e autenticidade. Os outros foram o Quiosque Estoril, referenciado em 1899 na zona do Chafariz d´El Rei, «à entrada da Estrada de Reguengos, que leva à fronteira com a Espanha», e o Quiosque Ferroviário, junto à respectiva estação de Caminho de Ferro.
Os quiosques  corresponderam a uma moda francesa que se instalou na Europa a partir de 1865, inspiradas esteticamente na Arte Nova, e onde era possível comprar flores, tabaco, bebidas e refrescos. O termo quiosque era na sua origem de origem persa e foi adoptado pelos turcos que o usavam para designar pequenas casinhas e instalações com cobertura que eram construídas nos jardins ou perto deles.
O responsável pela sua introdução na Europa foi o rei Estanislau  da Polónia mas os seus grandes divulgadores foram os franceses que deles fizeram a coqueluche do “fin de siècle” oitocentista. Em Lisboa, sempre afeita a adoptar as modas parisienses, o seu sucesso foi fulgurante. Antes e depois do trabalho para descontrair e aos fins-de-semana em passeio com a família, os quiosque regurgitavam de gente. Foi do dono de um deles que nasceu a ideia das esplanadas, colocando mesas e cadeiras em seu redor.
Bebia-se chocolate quente e vinho a copo, gasosas, capilé, misturas de anis, caramelo e água e cerveja de botija e vendiam-se sorvetes. Mais tarde, azeitonas, torresmos e pequenas postas de peixe frito. Foi nessa base que funcionou igualmente o quiosque do Rossio situado junto ao Palácio Barahona e ao Passeio Público, também com o seu coreto Arte Nova. Juntos, constituem as três marcas citadinas desse tempo. Igualmente  o quiosque prestou serviço de apoio aos primeiros jogos de futebol disputados em Évora, naquele extenso terreiro, desporto cuja introdução está associada àquela época
Saliente-se que o seu valor cultural foi reconhecido no Plano de Urbanização, datado de 1999 e revisto em 2010 ao ser catalogado, no primeiro inventário  que o acompanha, como Elemento Pontual de Valor Patrimonial e no segundo, apenas como identificado, devendo ser preservado e conservado. Isto é, desaparece o imperativo, a obrigatoriedade e fica o dever apenas. E isto só me traz à memória a obra do meu filósofo e sociólogo favorito, o francês Gilles Lipovetsky, intitulada “O Crepúsculo do Dever - A Ética Indolor dos Novos Tempos Democráticos”, Publicações Dom Quixote, Lisboa,1994.
A decisão da Conservatória e do IRN deixou, pois, o Quiosque nas  mãos da Câmara, como sua propriedade. Como esta não tinha dinheiro para mandar cantar um cego, apostando na sua reabilitação e recuperação, passaram-se três anos, por certo à espera  que a pequena construção acabasse por cair de podre, na esperança, porventura,  que a fúria dos elementos a derrubasse, tornando o seu arrasamento inevitável. Atentas as actuais circunstâncias, será inviável pensar no seu futuro aluguer a outrém, pois ninguém desejará enterrar dinheiro naquilo que lhe não pertence. Espera-se que o novo elenco camarário, se decida a um esforço financeiro para salvar esta pequena jóia do património citadino, recuperando-a e cedendo-a posteriormente à exploração. Os verdadeiros amigos da cidade agradecem. É o mínimo que se lhe exige.

José Frota

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