Há quase três anos, em Abril de 2013, o jornalista José Frota (entretanto já falecido) escrevia aqui no “acincotons” que era necessário que a Câmara valorizasse a figura e a obra do escritor Vergílio Ferreira, que foi professor em Évora e aqui escreveu, entre outros textos, o romance “Aparição”, muito ligado à vida da cidade. Assinala-se este ano o centésimo aniversário do nascimento do escritor (a 28 de Janeiro, no concelho de Gouveia) e neste “ano do centenário” muitos são os pretextos para que Évora evoque a sua passagem pela cidade e pelo Alentejo. Nesse sentido republicamos o texto de José Frota, fazendo votos para que ele sensibilize alguns dos responsáveis pela vida cultural eborense, que tão distraídos parecem andar para esta figura maior da cultura portuguesa.
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ÉVORA, VERGÍLIO FERREIRA E O TURISMO LITERÁRIO
Pelas nove da manhã desse dia de Setembro cheguei enfim à estação de Évora. Nos meus membros espessos, no crâneo embrutecido, trago ainda o peso de uma noite de viagem. Um moço de fretes abeirou-se de mim, ergue a pala do boné:
– É preciso alguma coisa, senhor engenheiro?
Dou-lhe as malas, digo-lhe que há ainda um caixote de livros a desembarcar.
– Então é dar-me a senhazinha, senhor engenheiro.
– Mas não me trate por engenheiro. Sou professor do Liceu.
Com passinhos curtos, anda dobrado, como se tivesse dores de bexiga. A cara e os olhos, são vermelhos, ensopados em sangue. Carrega tudo aos ombros com uma complicação de cordéis, promete-me uma pensão muito boa, mesmo na Praça, "que é já ali", e convida-me a segui-lo com os seus olhos lastimosos de aguardente. Está uma manhã bonita, com um sol íntimo dourando o ar, um vento leve da planície, fresco de orvalhos. À minha frente, o moço de fretes, agachado sobre si, vai dançando um estranho ritmo de arame, com os seus passos saltitados. Mal o olho. Trago em mim um pesadelo de ideias, um cansaço profundo que me halaga, me submerge. A Praça ainda é longe, e não "já ali", como me garantira o moço. Mas a angústia que me habita, a violenta redescoberta da morte, que eu acabo de fazer, tornam-me estranho nesta cidade branca, separaram-ma dos meus olhos vazios. Venho de luto. O meu pai morreu. Que têm que fazer, em face da minha dor, da minha alucinação, estas árvores matinais da avenida que percorro, a branca aparição desta cidade-ermida?
– Estamos quase, senhor engenheiro.
Vergílio Ferreira (Assim começa o capítulo I do romance "Aparição",1959)
Por todo o mundo, mais particularmente por toda a Europa, começa a ganhar importância o turismo literário enquanto segmento do turismo cultural. Por definição o turismo literário consiste em visitar os lugares reais relacionados com acontecimentos de ficção e com as vidas dos seus autores. Este poderá incluir a rota específica de uma personagem de ficção numa novela, visitar os cenários onde decorre uma história ou mesmo recorrer a locais ligados à biografia dos seus autores numa viagem aos ambientes que inspiraram a criação de um livro e onde eles o pensaram e congeminaram.
Este fenómeno começou a ganhar expressão em finais do século passado e o seu crescente interesse literário e turístico já levou a UNESCO a criar, em 2004, uma lista de “Cidades de Literatura” que integra Dublin, Edimburgo, Melboune, Norwich, Reykjavik e Iowa. Em Portugal a adesão a este tipo de turismo ainda é praticamente inexistente embora se venham fazendo estudos nesse sentido e apareçam já algumas sugestões para a sua implantação como formas de valorização do património e cultura locais. Neste trabalho tem-se distinguido sobremaneira a jovem directora da Escola Superior de Hotelaria do Instituto Politécnico da Guarda, Anabela Naia Sardo.
De um modo genérico, os estudiosos apontam cinco obras de grande relevo na literatura portuguesa como potenciais destinos a explorar na área do turismo literário: “Viagens na Minha Terra”, 1846, de Almeida Garrett, com especial incidência na zona de Lisboa e Santarém; “Amor de Perdição”, 1862, de Camilo Castelo Branco, destacando as cidades de Viseu, Vila Real e Viseu; “ Os Maias”, 1888, de Eça de Queiroz, valorizando as menções a Lisboa, Sintra e Coimbra; “ Aparição”, 1959, de Vergílio Ferreira, totalmente localizado em Évora e “Vale Abraão”, 1991, de Agustina Bessa Luís, com o Douro vinhateiro como pano de fundo.
Pois é... “Aparição”, obra maior do escritor, prémio Camilo Castelo Branco da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1960, primeiro romance existencialista em Portugal, polémico, com a acção passada em Évora, talvez mais aplaudido de início no estrangeiro que cá dentro e que levou a notícia da existência desta cidade «fantástica e misteriosa, aberta de quarteirões, de praças, de sonhos» ao mundo, dada a quantidade de traduções que a pouco foi conhecendo. Acontece que a trama do romance foi construída a partir de um cenário real e envolvendo personagens reais, ainda que sob designação diferente.
Vergílio Ferreira deu-o por concluído em 30 de Junho de 1959, ano em que viria a sair de Évora depois de aqui ter vivido e leccionado durante catorze anos consecutivos. Para a sua construção utilizou 22 fotografias que serviram de material de trabalho para a elaboração do romance. E sobretudo amou-a como poucos, conheceu-lhe os ambientes, sentiu-lhe alma e o também o pulsar do Alentejo. Vergílio saiu de Évora a 30 de Setembro desse mesmo ano. O livro só apareceu nas bancas em Outubro o que levou a o autor a já não sentir a reacção da população que nas suas gentes oficiais foi aliás muito mal recebido. Pelos grandes da terra, pelos fascistas e pelos padres, conforme teria ocasião de vir a referir mais tarde. E mais tarde também pelos comunistas que não lhe perdoaram o afastamento do neo-realismo.
Em Lisboa foi tecendo o resto da sua obra literária. Mas “Aparição“ continuou a impor-se e a suscitar o interesse de muita gente. Nos anos 90 a obra passou a fazer partes dos livros de leitura da disciplina de Português de 11º. Ano. Um interesse renovado sobre a obra e a cidade surgiu. Em 1994 no auge desta demanda estudantil pela cidade, a Escola Secundária André de Gouveia resolveu publicar um número especial de “Corvo” dedicado à vida e obra de Vergílio Ferreira no período da sua estadia em Évora no qual se incluiu um bem elaborado roteiro do romance, da autoria de João Monarca Pinheiro e desenhos de António Couvinha, constando de 15 locais a visitar.
Este era na realidade um excelente guia de abordagem ao conhecimento da cidade e constituía uma alternativa ao livro “Encontros com a Cidade “ de Túlio Espanca que mais não era de que um inventário muito pormenorizado e valioso dos principais monumentos da cidade, tratados cada um de per si mas desenquadrados do ambiente que os envolve e no qual aparecem como meras peças de museu de tempos muito antigos.
Este itinerário permaneceu entre professores e estudantes e não mereceu a atenção das entidades. A autarquia porém viria a ressarcir-se quando em 1999 promoveu uma homenagem da cidade ao autor aquando do 40º. Aniversário da publicação de “Aparição”. Por iniciativa do vereador Manuel Calhau Branco e da socióloga e estudiosa eborense Carmen de Almeida, a Câmara organizou uma grande exposição sobre o autor e a obra e mandou colocar uma lápide comemorativa do acontecimento no nº. 28 da Rua da Mesquita onde Vergílio Ferreira morou entre 1949-1959 ( nos quatro anos anteriores residiu na Travessa do Sabugueiro) e onde para além de “Aparição” escreveu “ Manhã Submersa” (Prédio Femina, 2002), “Apelo da Noite” e “Cântico Final” e os ensaios “ Carta ao Futuro” e do “Do Mundo Original”.
Vergílio Ferreira foi um dos maiores romancistas e pensadores de língua portuguesa do século passado e figura conhecida da cultura europeia. No nascimento do turismo literário em Portugal Évora pode e deve ter um papel pioneiro. À Câmara cabe o papel de imprimir e divulgar um roteiro do romance, fazer conhecer que a cidade guarda dele a memória no sítio em que deu expressão ao seu talento criativo, por à venda no Posto de Turismo (agora rebaptizado de Departamento de Promoção Turística) exemplares de “Aparição” (em espanhol ou em francês também, que as há) porque existe sempre quem goste de (re)ler os livros enquanto viaja pelos locais onde decorrem as narrativas.
Isto não envolve grande dispêndio de verbas sobretudo se não esquecermos que um estudo da Universidade de Évora realizado em 2012 define o perfil do turista visitante como estando entre 41 e os 60 anos, possuir maioritariamente o ensino superior, dispor de assinalável poder de compra e ter como principais motivações o Património Construído e Monumental, o Lazer e Conhecer e Viver uma Experiência Cultural Diferente. E conhecer Évora através de “Aparição” é sem dúvida uma excelente opção.