Os cidadãos portugueses descobriram nestes últimos dias, um novo objecto produzido de modo quase instantâneo, por um dispositivo mediático avassalador: “o compromisso de salvação nacional”. O acto de baptismo valeu acto de criação, o que é conforme às regras da manipulação de massas: dá-se o imaginado pelo real, o fictício pelo existente. Dois elementos o compõem, como deve ser, porque um só não faria frase, e mais que dois tornariam a sua percepção imediata mais custosa em termos cognitivos: “o compromisso” e a “salvação nacional”. O objectivo da sua criação e da sua difusão é claro: tornar irrecusável o primeiro elemento (“compromisso”) justificando-o com o segundo (“salvação nacional”). A sua difusão, a sua repetição exaustiva, a sua introdução em frases mais complexas e combinações com outros elementos fulcrais (“partidos”, “interesses”, “resgate”…) torna-se um fenómeno em si: pouco a pouco, tenta fazer-se como se o objecto existisse, como se fosse um objecto concreto, material, natural ou artificial: “pedra”, “estrada”, “cadeira”.
Antes de analisar com mais atenção o nascimento deste objecto imaginário e a sua propagação, queria evocar um outro objecto da mesma natureza e comparar os seus destinos. Esse outro objecto é o “pacto de agressão”, expressão (com os dois elementos) que se queria viral, destinada a tornar-se uma noção do senso comum, ou seja, dum objecto concreto material e realmente existente.
Muitos observadores notaram antes de mim que o destino do “pacto de agressão” foi o de uma expressão que adquiriu o estatuto dialectal, sentida e entendida como a marca dum partido bem identificado e apenas dele, ao mesmo tempo que a expressão ficava marcada pela sua origem, sem poder alastrar mais além dela. O destino duma expressão como esta é patético… e injusto. A muitos cidadãos que a lêem, repetida como é nos mais diversos contextos (mas sempre pelo círculo restrito que a produziu), ela surge como mais uma “cassete”, para utilizar a expressão nitidamente pejorativa habitual. A expressão perde toda a sua eficácia e quanto mais é repetida menos “passa”. O falhanço da intenção é manifesto: em vez de criar um objecto percepcionado como existente, criou uma marca de pertença que a desvaloriza (“outra vez o PCP com a cassete”…).
E no entanto, se retomarmos cada um dos elementos, a expressão refere-se a uma verdade (não a uma falsidade ou mentira, como a primeira). “Agressão”? Sem qualquer dúvida: o combate dos que detêm o poder, uns de modo mais fanático e ideológico (ministros, políticos dos partidos no governo), outros por mero interesse próprio (empresários) é claramente o de reduzir a parte dos salários na riqueza nacional, de destruir os órgãos intermédios de resistência (sindicatos…), de impor reduções drásticas na parte da riqueza nacional consagrada à redistribuição a favor dos mais fracos (pobres, doentes, idosos…). Podemos discutir o elemento “pacto” que sugere contornos conspirativos e se tinge de conotações paranóides. “Pacto” quer dizer um acordo formal assinado entre protagonistas, com um plano comum, ordenado, etc. E é fácil demonstrar que a convergência objectiva de interesses não precisou de nenhum “pacto” para ser efectiva. Para quem tem memória de outros tempos, “pacto de agressão” é o contrário do “pacto de não-agressão” (germano-soviético, assinado por Ribbentrop e Molotov em Agosto de 1939), lembrança dolorosa que, mesmo que permaneça inconsciente para a maior parte os cidadãos portugueses, estará na sombra da memória comunista como um trauma profundo. Mas podemos dar de barato que convergência de interesses (diverso embora e em parte contraditórios), vale acordo de fundo quanto aos objectivos gerais que evocámos. “Pacto de agressão”, descontando o que se disse agora, corresponde portanto a uma realidade: há agressão e há conluio de interesses. Queria chegar até este ponto para interrogar a constatação que temos que fazer: uma expressão que corresponde a alguma verdade literalmente não passa as fronteiras do grupo restrito, não é adoptada pela língua comum como descritiva, perde toda a eficácia e morre, fechando ainda mais o discurso dos que a introduziram no estatuto de discurso dialectal, repetitivo, estereotipado e fica reservada a um pequeno círculo de fiéis.
O contrário está a acontecer com o tal “compromisso”. Quando os mais diversos actores se referem a um certo encontro entre partidos, indexam-no à noção recém-criada de “salvação nacional”. Na diversidade dos actores (locutores), políticos, comentaristas, jornalistas, e na diversidade dos seus universos de referência (vários partidos, vários meios socioeconómicos, várias ideologias sem contorno preciso ou perceptível), está a explicação do seu sucesso. O “pacto” ficou encurralado na propaganda demasiado clara para poder… propagar-se; o “compromisso de salvação nacional” tornou-se um temível instrumento de manipulação de massas. E no entanto, ao contrário da primeira, esta expressão é totalmente vazia de conteúdo, o “compromisso” partidário é apenas mais uma escaramuça entre adversários irredutíveis, os interesses particulares de uns e outros protagonistas e dos seus mecenas não só divergem (dentro do “governo” se é que o há, como fora dele) como são contraditórios. Quanto à “salvação … nacional”, ela é uma ficção total: mas começou a funcionar em pleno. Não só nada será “salvo”, como a sua relação com o “nacional” é indiscernível. O binómio “salvação nacional”, que nos imerge na semântica da “União Nacional”, dos unanimismos férreos próprios dos regimes autoritários é, só por si, um crime semântico, um atentado contra o senso comum que, quer queiram quer não, integra, no Portugal dos dias de hoje, uma larga componente de bom senso: ESTES políticos, após destruírem vastos conjuntos de recursos e de demolirem os dispositivos que garantem a coesão social (o bem denominado “estado social”), procuram uma tábua de salvação para… o sistema político que os serve. Hoje, os partidos que “negoceiam” a salvação “nacional”, estão a tomar consciência de que é a sua própria salvação que está em cima da mesa. Por isso o mecanismo de manipulação de massas tomou tal importância (sem precisarem de chefe de orquestra e não é o inquilino do tal palhácio que pode sê-lo, e cada um, jornalista, comentador, etc., tomou espontaneamente a seu cargo a intoxicação da opinião. O seu sucesso no imediato inquieta ou deveria inquietar todos nós. Os intelectuais têm o dever de denunciar essa manipulação e de desmontar os mecanismos que lhe dão eficácia, para reduzir a expressão a um elemento dum dialecto próprio dum grupo restrito e retirar-lhe poder significante: uma… cassete ridícula.
José Rodrigues dos Santos / CIDEHUS / Évora / Julho de 2013