Durante anos foi sendo incutido, em particular nos mais pobres e desprotegidos, a ideia de que a grande injustiça era a existência de pobres menos pobres.
Fomentando a inveja social entre os que ganham quinhentos euros e os que ganham seiscentos, entre os que têm reformas de miséria e os que recebem rendimento social de inserção, entre os desempregados que recebem subsídio de desemprego e os que não recebem, entre os que têm médico de família e os que não têm.
Os exemplos poderiam continuar e todos nos lembraremos sempre de mais um desabafo de indignação contra os pobres de outro género ou intensidade de pobreza.
Este fomentar quotidiano, em particular por parte de uma certa comunicação social que vive da exploração desse fenómeno, tem como claro objectivo desviar as atenções das verdadeiras razões da pobreza, dos seus responsáveis e beneficiários.
Quanto mais duras são as condições de vida para a maioria, mais eficaz se torna a passagem desta insidiosa mensagem que vende jornais e horas de televisão.
Não é por isso de estranhar que quando se anuncia que os refugiados que chegarem ao nosso país terão assistência médica gratuita, se levantem vozes de indignação contra essa medida, em particular por aqueles que estarão mais próximos (embora muito distantes) das condições dos que agora chegam.
Protestam contra a atribuição de assistência médica gratuita a quem foge da guerra e da fome, mas falta-lhes a consciência para protestar contra os responsáveis pela guerra.
Protestam contra a atribuição de um tecto a pessoas que viram morrer os seus familiares mais próximos e arriscaram a vida para não terem sorte idêntica, mas falta-lhes consciência para protestar contra uma política de habitação que os atirou para os braços da usura bancária com a miragem de que assim teriam casa própria.
Não é fácil discutir serenamente com quem argumenta da forma mais básica, olhando para a realidade sem querer saber como ela foi moldada e é por isso que o populismo mais abjecto vai fazendo o seu caminho.
É muito mais fácil atirar uma frase lapidar, que parece verdade, do que desmontar o pensamento que está na origem dessa conclusão, irrefutável para quem a afirma.
Quando hoje vi passar em rodapé num dos canais de televisão a frase “refugiados terão médico de família e não pagam taxas moderadoras”, senti uma náusea.
Será que quem mandou colocar aquela nota de rodapé estava à espera que os refugiados trouxessem euros para pagar a taxa moderadora? Ou defenderá que não se preste assistência médica a refugiados que aceitámos receber?
Aos que passaram o resto do dia a protestar contra algo absolutamente natural, que é a prestação de cuidados médicos a quem precisa, independentemente da sua condição, nacionalidade, origem étnica, credo religioso ou a sua ausência, sugiro que protestem contra quem, de forma grosseira, vai apontando inimigos imaginários para que nunca vejamos a mão que segura o fio da marioneta.
Eduardo Luciano (crónica na radiodiana)