Enquanto andam pelas casas e pelos corredores da Democracia a decidir quem há-de fazer o quê para governar o País nos próximos quatro anos – que foi para isso que nos chamaram a nós, cidadãos eleitores, às urnas –, vou falar hoje de meritocracia.
Parece-me ser este o mais temível sistema de opção e escolha que, no patamar abaixo da hierarquia que põe no topo a eleição democrática pelo voto, poderia ser considerado, com bondade, o garante para o sucesso da atuação dos eleitos, ou em sistemas mais fechados e menos públicos, dos escolhidos. Devolver-se-ia à escolha, e às eleições, o papel de uma atividade que me é tão cara: a avaliação. (Os meus alunos sabem bem o que para mim significa – em trabalho, em estímulo, em aprendizagem, para mim e para eles – isto da avaliação, mas adiante.)
Digo temível, isto da meritocracia, porque impõe princípios que visam eliminar as falhas, os erros, os experimentalismos, os jeitosos, num caminho para a eliminação dos possíveis telhados de vidro de quem é escolhido, já que se as “saraivadas” podem ocorrer por circunstâncias exteriores, quem com elas leva deve conseguir resistir-lhes. Afinal o jogo do poder, em qualquer nível, mede forças, ainda que forças de campos tão díspares como a real e frágil condição humana, a capacidade de trabalho, os limites de resistência e, último mas não menos importante porque se pode confundir com muitas outras características muito mais relevantes para se ser candidato à escolha pelo mérito, a vontade.
É muito curioso o que se pode ler lá pelo meio, na entrada da mais popular enciclopédia contemporânea, falo da Wikipedia naturalmente, com todas as reservas que só o nomeá-la suscita ao mundo académico, e que diz alguma coisinha a propósito da associação que vos faço de eleições, e respetivas consequências, e da meritocracia. Diz-se, e mesmo desconhecendo o ou a responsável por tal observação tendo a concordar, que numa «democracia representativa, onde o poder está, teoricamente, nas mãos dos representantes eleitos, elementos meritocráticos incluem o uso de consultorias especializadas para ajudar na formulação de políticas, e um serviço civil, meritocrático, para implementá-los.» E tocando no que considero ser o cerne da questão, acrescenta: «O problema perene na defesa da meritocracia é definir, exatamente, o que cada um entende por "mérito". Além disso, um sistema que se diga meritocrático e não o seja na prática será um mero discurso para mascarar privilégios e justificar indicações a cargos públicos.» Eu sei que é a Wikipedia! Mas precisamente porque é a Wikipedia e dá a volta ao mundo, retira qualquer interesse particular no nosso caso, o português e caseiro estado do momento presente.
O Vergílio Ferreira, que muito escreveu, quer em ficção quer em ensaio e reflexão, mais sobre os méritos e desméritos dos insondáveis comportamentos do indivíduo ao longo da vida e perante as realidades que a definem, faz no seu diário, entre 1984-85, uma paródia a um adágio popular que estende ao comportamento coletivo, em sociedade portanto, o que considero um retrato de quem, nos quais me incluo, começa a descrer de alguma vez ver acontecer em tempo de poder assistir a implantação da meritocracia como princípio orientador. Escreveu ele que «Num mundo de cegos quem tem um olho é aleijado.» Felizmente, digo eu, que as muito minhas descrenças não me impedem de acreditar nas gerações futuras e ir tentando abrir alguns olhos no tempo que a mim me resta.
Até para a semana.
Cláudia Sousa Pereira (crónica na rádio diana)