Parte importante dos últimos anos das nossas vidas foram passados a ouvir Cavaco Silva falar sobre a importância da existência de consensos e de soluções governativas estáveis.
Sabemos hoje, melhor do que nunca, que este apelo estava e está carregado de um cinismo enorme. Precisamente nas semanas em que a política de consenso e a procura de uma solução governativa estável chega à esquerda portuguesa, Cavaco procura matá-la desde início, entrando em pânico e precipitando-se, mostrando, mais uma vez, não estar à altura do cargo que ocupa.
O que temos assistido nos últimos dias tem um nome, um nome que a direita abomina: DEMOCRACIA. Bem sei que a direita lida mal com a democracia e lida pior com a verdade na democracia. Procuraram jogar o jogo da eleição de um governo e de um primeiro-ministro, e procuraram impingir este jogo aos eleitores. Falharam no jogo, mas continuam a tentar impor as regras falseadas.
No dia 4 de Outubro, os portugueses votaram para eleger a constituição da Assembleia da República através da eleição de deputados e deputadas defensores de um determinado programa político para o país. O resultado destas eleições não foi confuso, nem obriga a grande reflexão: três grandes forças políticas (PS, Bloco de Esquerda e CDU) partiram para estas eleições com programas próprios, mas com um denominador claro, expresso várias vezes: romper com a austeridade e defender os Serviços Públicos e o Estado Social. A defesa destes princípios não esgota o que está contido nos três programas, mas estes constituíam-se com factores-chave, especialmente no confronto com a direita (entenda-se coligação PSD/CDS), que demonstrou claramente querer continuar com a política austeritária e com a destruição do Estado Social. Havendo, e ainda bem que há, diferenças entre os programas destes partidos, e admitindo que as formas de defesa do Estado Social e rompimento com a Austeridade podem ser diferentes, existe este forte elo de ligação, que é público e que era e é conhecido dos eleitores. Cada voto no PS, no Bloco e na CDU foi também, e arrisco que principalmente, para romper com as políticas extremistas seguidas pela direita nos últimos anos.
O resultado das eleições foi claro, embora os comentadores de direita (que detêm um quase exclusivo na comunicação social) tenham dificuldade em engolir: estes três partidos detêm a maioria absoluta na Assembleia da República, pelo que mais do que uma opção, é um imperativo que se analise a viabilidade governativa que faça cumprir os princípios que atrás enunciei. Cavaco Silva não quis fazer esta leitura, procurou atirar areia para os olhos dos portugueses, e precipitou-se a chamar Passos Coelho. Tão atrapalhado foi nesta precipitação que teve a lata de falar da importância de haver, na viabilização de um governo, um entendimento comum sobre a NATO, não se dignando a referir por uma única vez a importância de haver um consenso na defesa da Constituição da República Portuguesa.
Fica tudo cada vez mais claro. Entre a defesa de valores consagrados na Constituição, como o Estado Social ou o Emprego, e a NATO, Cavaco obriga-se a fazer uma escolha. Percebo agora muito melhor a sua ausência no 5 de Outubro.
Gosto quando o nevoeiro se dissipa. Gosto quando o medo muda de lado. Gosto quando as regras da democracia ficam mais claras. Os portugueses não votaram para um concurso de beleza, nem os resultados podem ser interpretados como uma tabela classificativa de um torneio de futebol. Na Assembleia joga-se a democracia, joga-se o nosso futuro. Cada minuto conta, cada decisão é determinante.
Uma a última nota: demorou algum tempo, mas parece que os partidos e comentadores de direita perceberam, finalmente, que o Bloco de Esquerda não é só um partido de protesto, mas acima de tudo um partido de proposta. Começaram a tremer, que continuem…
Até para a semana!
Bruno Martins (crónica na Rádio Diana)