Desenho de Marcos Santos (aqui)
O espectáculo das propagandas partidárias tem vindo a afunilar-se à medida que o tempo passa e os meios ditos de “comunicação social” se vão cansando de dar voz a minorias: pequenos partidos, movimentos cidadãos, etc. A desculpa liminar é a de que esses movimentos não têm qualquer probabilidade de vir a “ser governo”, isto é, conseguir uma qualquer parte do poder e são por isso mesmo negligenciáveis. Pouco importa o défice democrático que esse facto assinala e acentua. Limitando as “perdas de tempo” com vozes minoritárias, discordantes e em todo o caso periféricas em relação aos círculos do poder, a alternativa que nos é arrasadoramente apresentada é “um dos dois”: ou este ou aquele. Nos “programas” desses dois “grandes” e em breve exclusivos candidatos, uma grande ausente: questão da dívida pública. Um arrasoado de medidas avulsas no “programa” dum deles, que se resume a reclamar o direito de prolongar pura e simplesmente a política dos últimos quatro anos (e para quê entrar em detalhes?), a dívida só é evocada para afirmar que está tudo bem, e cada vez melhor. No programa do outro, já que tem que propor mudanças às orientações existentes, existe uma extensa lista de medidas, cujo alcance, tomemos bem nota, engajam cerca de um por cento do PIB. O primeiro é o “Senhor Tal e Qual” o outro poderia ser apelidado “Senhor Um por Cento”. Não preciso sequer de pressupor que são perfeitamente equivalentes. O que penso ser decisivo é o cuidado com que a questão da dívida pública externa é evitada. Um, porque surfa na situação actual da dívida, com o beneplácito daqueles que com ela lucram. O segundo, creio, porque colocar a questão da dívida na mesa o tornaria alvo dum tsunami ideológico, político, interno e externo, embora, paradoxo patético, os grandes interlocutores (institucionais - FMI, UE, BCE, ou privados “os mercados”) todos saibam e alguns tenham repetido, que a dívida é insustentável.
E todavia, essa é a questão central: se a dívida externa é insustentável, como vai ser possível… sustentá-la, ou seja, conservar-lhe os factores que a tornam justamente insustentável – montante / PIB, taxas de juro, maturidades?
Estou longe de ser o primeiro a afirmar que a questão da dívida pública é o centro da nossa situação. O tema do défice está ligado ao da dívida, mas de modo infantil. Se o “governo” tinha prometido que esmifrando o país nos poria ao abrigo das críticas dos nossos credores, das “instituições” e dos santos “mercados”, e ficou claro que em vez dos 3,7% o défice terá ficado em perto do dobro, o problema não está nesse abuso. Porque de facto, a “promessa” – que devia ser cumprida pelo recurso à violência social – e o seu incumprimento (já cumpriram alguma) são um “fait divers”.
Consideremos em primeiro lugar o “serviço da dívida”: um compromisso que consiste em extraír da riqueza produzida no país entre 10.000 e 12.000 milhões de euros por agora (quando as grandes maturidades chegarem será mais). Essa extracção exige uma “austeridade” (este termo é uma mentira: uma destruição dos serviços públicos no seu conjunto e uma desvalorização maciça do valor do trabalho não é austero, é criminoso: o hold up do século), que deveria prolongar-se (só menciono aqui números oficiais), pelo menos até 2030.
Mas em segundo lugar e, em meu entender principalmente, vem a questão da acumulação da dívida mesmo que o objectivo do défice de 3% seja (ou fosse) atingido. É que esses 3% têm que ser financiados no exterior – nos mercados financeiros, visto que o “programa de assistência” (mais uma expressão que diz o contrário do que é), terminou. Ora, essa dependência em relação aos mercados financeiros coloca o país de novo no olho do furacão. O serviço da dívida (e a manutenção dos termos desta dívida – montants e taxas de juro) enfraquece o país o suficente para que fique à mercê do aumento (especulativo ou simplesmente tendencial) das taxas de juro e das condições do seu financiamento externo. E isto é tanto mais provável, quanto o aumento do “stock” de dívida aumentar. Ora, com défice de 3% ou de 7%, o montante da dívida vai crescer. E com ele o fardo do tal serviço da dívida (juros + reembolso de capital). A minha conclusão é simples e aliás pouco original: a dívida pública portuguesa é insustentável e sê-lo-á cada vez mais. O respaldo oferecido pelo BCE, tanto em termos de criação de moeda (“quantitative easing”), como pela compra de dívidas soberanas é concedido sob condições draconianas: manter níveis elevadíssimos de “austeridade”, de modo a manter a lógica que actualmente impera nas relações entre centro e periferia: uma lógica extractiva.
Quanto à “bondade” do BCE e das “instituições” como se diz depois da Grécia, sabemos o que ela significa. A este propósito, tive a oportunidade de conhecer o relato por um desses grandes jornalistas (ainda os há) que acompanharam quase por dentro as negociações com a Grécia do modo como Tsipras foi ameaçado. O presidente do Eurogrupo afirmou literalmente durante uma reunião: “Se vocês (Gregos) não assinam, destruímos o vosso sistema bancário”. Tsipras acabou por assinar um memorando - funesta palavra – de entendimento – abismo de hipocrisia – piorque aquele que lhe tinham proposto antes do referendo. Voltarei a escrever sobre esse momento histórico lamentável.
Para nós, a lição é simples, mas óbvia: sem um crescimento do PIB de pelo menos 3% / ano, não só a dívida existente não poderá ser paga, como vai aumentar. Até ao ponto em que, exangue, o país será obrigado a renunciar a existir como país. Um aumento (que os especialistas prevêem, que seja geral na Europa, ou particular para o país) das taxas de juro reporá as questões na sua verdadeira ordem de prioridade. Ora, essa taxa de crescimento não está ao nosso alcance, nem de nenhum país da Europa. Mau augúrio?
Penso que o palavreado que por aí vai, a manipulação dos espíritos (ou o senhor Tal Qual ou o senhor Um por Cento, e nada fora disso), deixando de fora a questão da dívida se assemelha a um tango dançado em cima do fio duma navalha.
JRdS
Évora, 30 de Setembro de 2015