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A “cultura” da denúncia!

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Joaquim Palminha Silva
            Aquele que anuncia a verdade, e a aponta com seu dedo, nada tem que ver com Judas Iscariote que apontou e mostrou Jesus Cristo aos soldados, na noite mais amarga de todas.
            Apontar, esse gesto aparentemente tão “natural”, deu início a uma cultura moral que recaiu sobre a Humanidade (especialmente portuguesa) a partir do próprio Judas que, roído de remorsos, se enforcou. Temos, pois, de aceitar esta conclusão cruel: - É “criminoso” apontar!
            Porém, o nosso desgraçado mundo está superpovoado de contradições. Assim, de dedo indicador em riste, como cano de uma pistola, apontar o prevaricador, o ladrão ou o falso mensageiro de uma “novidade” de suposta de justiça social, tem dois fundos interpretativos.
            1º) – Quando uma vez o meu avô perguntou ao jantar a nós dois (eu e minha prima Teresa): «Quem ratou a marmelada que está na despesa, no tabuleiro de barro vidrado?». A minha prima, que já era insinuante, apontou o dedo rosado sobre mim, o culpado: - «Foi o Joaquim!». Para reprimir a “natural” tendência denunciadora da prima Teresa, o meu avô resolveu punir a menina, privando-a de sobremesa e, a seguir, embora zangado comigo, debitou-nos um discurso sobre a abjecção que é o denunciante. Pouco ou nada entendi na altura. O meu avô explicou então que, quando perguntou, esperava que eu respondesse, assumindo com coragem a culpa, ainda que pagasse tudo depois com língua de palmo, como se costumava dizer.
            Graças a este acontecimento doméstico, deixei de apontar com o indicador fosse o que fosse. Isto estimulou a minha busca de adjectivos para situar, sem ter de o apontar, um objecto, uma pessoa, etc.. Enfim, enriqueci os meus conhecimentos na língua de Luís de Camões e, por isso, repito ainda hoje: - É feio apontar!
Um dia, já jovem com alguma consciência política, a “lição” do meu avô veio a ser inesperadamente “actualizada”, sem mais nem menos…pelo ditador: - A determinada altura de um discurso, a cinzenta personagem Prof. Oliveira Salazar apontou o seu dedo indicador para o vazio, como um cano de uma pistola!
Fiquei esclarecido até aos dias de hoje: - É obsceno apontar!



2º) – A coragem de confessar a culpa, de assumir que errámos, acabou sendo uma raridade, uma vez que se tornou “moralmente” condenável apontar/denunciar a dedo o culpado. Pareceu-me, então, que a “culpa” passava a ter uma boa couraça protectora, pois na verdade, só em grandes aflições os culpados confessam os seus erros. Por exemplo, para salvar a pele, garantir a manutenção do seu estatuto socio-económico e, em última instância, conseguir absolvição para a alma.
De forma que, com os dedos indicadores contraídos, o denunciante que há em cada um, mantinha-se longe do “pecado”, naturalmente à custa de cerzir a vida em todos os seus velhos rasgões, olhando em redor, desconfiado até do azul do céu, não fosse alguém reparar no seu desejo de denunciar, mesmo subterrâneo.
Mas o regime da ditadura necessitava de denunciantes como de ar para respirar, fez pois constar que nem sempre o silêncio é de oiro. Assim, quem o guardava corria o perigo de deslizar para a suspeita de traidor à Nação, de subversivo. E o «Não se aponta que é feio», acabou caindo em desuso.
Então, o regime legitimou mesmo um certo tipo de «apontadores» … Foi mais longe, tornou-os profissionais e integrou-os, de forma não declarada, no âmbito do Decreto-Lei nº35046 (de 22 de Outubro) de 1945, que criou a Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE). Como os ventos da História já haviam mudado, invocou-se na criação desta polícia política o modelo da Scotland Yard… A acção vigilante de «defesa do Estado», além da administração pública e da organização para-militar «Legião Portuguesa», ficou a contar com um “exército” de «informadores» civis, pagos à tarefa ou mensalmente, com direito a bónus segundo a “qualidade” da denúncia…  
A lição do meu avô, de teor «democrático», se assim posso dizer, estava pois condenada ao imbróglio, desde o dia em que o ditador pagou aos que apontavam a dedo os anti-fascistas deste País.
E o País mergulhou de novo, de forma sistemática, na “cultura da denúncia”… De novo? Sim! – Quando em 1760, o Marquês de Pombal criou a Intendência da Polícia da Corte e do Reino, municiou logo esta com uma «rede de espias e informadores»! Portando, o Prof. Oliveira Salazar seguiu de perto uma “tradição” inaugurada pelo Marquês de Pombal! De resto, isto é paradoxal, pois o terrível marquês foi personagem “muito querida” de uma parte substancial dos “democratas” anti-salazaristas!  
Enfim, a “cultura da denúncia”, mesmo após a democratização do País, veio para ficar?- Não sei…
O facto é que ganhou terrenos novos e, invadindo o jornalismo com a “mania” de revelar a verdade, “toda a verdade”, colou-se à mentalidade corrente do cidadão. Pelo que ninguém estranha a existência de tanto dedo apontado à direita e à esquerdae, ainda mais aberrante, há mesmo meios de comunicação social que pagam as informações que os «apontadores» (denunciantes anónimos) lhes indicam…Enfim, nada escapa, nem vida privada nem «segredo de justiça» …
Por fim chegamos a este patinhar na lama: - Quem denúncia pode mesmo arredondar o seu orçamento, desde que a informação valha os “trinta dinheiros” de Judas!



Soldados do MFA no acto de prisão de um “informador” da PIDE, de Abril de 1974.

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