Durante décadas foi “moda” no Ocidente (imprensa, rádio e televisão) criticar a Rússia, por causa do seu regime totalitário, de raiz supostamente marxista… Depois, uma vez caído o totalitarismo, com vários pretextos, sendo uns mais “aceitáveis” do que outros, voltou a ser “moda” criticar a Rússia, orquestrar contra ela provocações militares (NATO), ameaçá-la, na geografia do continente europeu, com o isolamento e, novamente, imprensa, rádio e televisão apontam os holofotes da crítica na sua direcção!
Neste mesmo contexto, e sem pestanejar, venho aqui declarar que, independentemente de regimes e circunstâncias políticas da “moda”, eu faço parte da multidão de ocidentais que têm uma dívida de gratidão para com a Rússia… Explico já a seguir…
Na Rússia, o poeta e o escritor são efectivo “Estado” alternativo ao despotismo imperial do Czar (“branco” e, depois, “vermelho”), e um factor de cristianização ou humanismo militante no seio da barbárie asiática. Desde o século XVIII que os grandes autores, antes de se tornarem parte integrante da cultura multifacetada da Rússia, foram perseguidos, proibidas e censuradas as suas obras e, por fim, eles próprios humilhados e aprisionados pelos sucessivos “senhores” do Kremlin…
O isolamento e as numerosas punições sofridas pelo poeta Aleksander Puchkine (1799-1837), o contínuo desespero do escritor Nikolai Gogol (1809-1852), a prisão e deportação para a Sibéria de Dostoievski (1821-1881), a luta do grande escritor Leão Tolstoi (1828-1910) contra a censura, pela liberdade de opinião e pela emancipação do campesinato, então sujeito a uma vida mergulhada no servilismo feudal, as perseguições e humilhações sofridas por Mikail Bulgakov (1891-1940) sob o estalinismo, as censuras, proibições e perseguições sobre o escritor Boris Pasternak (1890-1960), prémio Nobel em 1958 e, entre muitos outros, tudo o que sofreu o escritor, e prémio Nobel em 1970, Soljenitzyne (1918-2008), dizem-me que a criação literária russa partilhou a universalidade da dor humana com tal intensidade que a alma, dilacerando-se numa contínua interrogação sobre o seu destino terreno, fez desta mesma criação um território de liberdade e de profunda espiritualidade… que o Kremlin odiou e perseguiu!
Foi, pois, nesta linha de pensamento que escreveu Dostoievski, transformando a maior parte dos seus romances num diálogo interior: - O mundo da obra Crime e Castigo ou do romace Irmãos Karamazové a alma humana…e as suas inquietações. A natureza quase desaparece em grande parte das suas obras. A alma, com as suas apoquentações, a sua desordem, visões, interrogações e crises de Fé, eis a grande e exclusiva problemática do escritor russo.
Mas também, e de forma avassaladora, são território da alma humana o mundo literário de Gogol, Puchkine, Pasternak e Soljenitzyne (nomeadamente com a obra O Pavilhão dos Cancerosos). Neste sentido, posso dizer, sem grande margem de erro, que a literatura russa partilha, através da inquietação, da interrogação e da Fé na redenção da consciência humana, o mesmo destino que a Grécia clássica.
Na verdade, sem este grande serviço prestado pela literatura russa, nós teríamos penado muito mais para apreender o imenso reportório que habita alma humana, bem como a sua universalidade… Entre muitas outras obras, não conseguiremos imaginar a “paisagem” da nossa consciência cristã, mesmo quando não somos mais religiosos, sem recorrer ao romance Guerra e Paz, de Leão Tolstoi.
A existência humana é bastante dolorosa, porque encerra obrigatoriamente muita luta, muita dor, muita decepção e, ao mesmo tempo, requer muita Fé. Por isso, do fundo da nossa consciência transbordante de memórias, boas e más, deverá erguer-se um sentimento de gratidão à grande literatura russa e seu misterioso destino no seio da alma humana, esta candeia bruxuleante, mas sempre pronta a descobrir novos caminhos da Fé e da Esperança.