Joaquim Palminha Silva |
(In Memoriam de Federico Garcia Lorca)
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Ser poeta é viver num estado de santidade pagã!
Não importa que tipo de poeta se seja. Desde os simples e espontâneos poetas populares, até aos sofisticados e intelectualizados “poetas de livraria e estante”: - Todos vivem esta “santidade”!
Tal e qual os santos, os poetas não mergulham no quotidiano da mesma forma que as demais pessoas. Há neles uma certa deformidade na visão do mundo e das vidas humanas que os faz adivinhar no real a fantasmagoria, o impensável, o paradoxo e a deformidade que há na beleza convencional, e a alegria que há na tristeza…
Todos os poetas dormem com a porta da alma aberta, sem medo dos ladrões que vivem na proximidade das letras, prontos a furtarem palavras inéditas, imagens douradas, metáforas de luz cristalina… Mas pergunte-se, fazem-no inconscientemente? – Na verdade, ninguém pode roubar a um poeta o “desastre” da sua santidade! Ninguém o inveja a tal ponto que lhe queira roubar as proximidades do abismo em que vive, da agonia que lhe é indispensável, da insegurança que lhe serve de abrigo.
O poeta, normalmente, morre do muito uso que dá de si, poema a poema. A santidade cobra-lhe uma exorbitância de tempo de vida, dando-lhe em troca uma protecção inquietante!
Ninguém escolhe ser poeta, tal como ninguém escolhe ser santo. – Acontece!
O poeta nasce impregnado de poesia e envolvido nela vive, tal doença incurável que o encaixilha no mundo, desenhando-lhe sobre os olhos um véu transparente… Véu que ensopa, com o seu colorido, a paisagem que o circunda, que o faz ver o que outros não vêm.
Desenhando-se palavra a palavra, o poeta leva algum tempo a esvair-se, porque agarrado à sua condição cismática, entorpecido pelos rasgões de luz que só ele avista na rotina deslavada, e o golpeiam em profundidade e em dor.
Todas as cambiantes autoriza o véu, fazendo do olhar do poeta uma mágica de explosões, um desgrenhamentos de ideias, uma série de êxtases imprevistos. Há na vida do poeta um cenário irreal que a realidade admite, mas que só aos santos é possível alcançar!
O poeta é capaz de intuições para lá da intuição dos sábios. O poeta vive na “outra banda” do mundo, e vem para o meio de nós pregar os gritos que ninguém ouve, narrar as sofridas agonias que ninguém vê, falar do futuro que ninguém sabe. O poeta aparece para nos apontar a luz amorosa que entre nós se suspende, com receio de penetrar nas entranhas da alma humana, pois esta engrossou a sua ferocidade…
Tal qual os santos, o poeta não cessa de bater nas vidraças da banalidade, até que a noite trágica do mundo o silencia, quando por fim consegue assassinar-lhe a palavra e o canto!
Porém, a sua voz nunca mais acaba, nasce de novo! E, num dado momento, outro poeta surge com o mesmo véu sobre os olhos para ver o que ninguém vê. – E o poeta diz outra vez tudo com um som original! – As fisionomias do amor e da morte, os objectos, a cor, a luz… A sua voz e o seu canto crescem, sem que seja culpado de aborrecer à sua volta! O que foi eco quase extinto aumenta, tornando-se clamor, chamando os homens e as mulheres para a alegria da vida…
Ser poeta é estar possuído por uma santidade pagã… E, em vida, pagar caro por isso!
Federico Garcia Lorca (1898-1936)
Preso e assassinado (18 de Agosto de 1936) pelos falangistas do ditador Francisco Franco, durante a guerra civil espanhola (1936-1939), o seu desaparecimento tem sido objecto de inúmeras especulações, pois nunca foi encontrado o corpo do poeta e dramaturgo. Bastante embaraçado com o trágico acontecimento, certa vez, o próprio general Franco (1936-1975), apenas admitiu que o escritor havia morrido «misturado com os revoltados», acrescentando, com a hipocrisia que o caracterizou, que tal não passou de um dos «acidentes naturais da guerra».
Oficialmente nada se sabia sobre os últimos momentos de Federico Garcia Lorca, o que não obstou que historiadores e biógrafos especulassem sobre o que deverá ter sucedido. Por esta razão, no passado dia 23 de Abril, após anos de apertos e angústias adensando o mistério, o «site» de grande informação eldiario.este e a rádio «Cadena SER» revelaram a existência de documentação, até então conservada secreta, onde o regime de ditadura de Francisco Franco “confessa” a autoria do crime!
Entre outras declarações, o documento secreto diz com crua frieza (conservamos a ortografia espanhola) : «Sacado por fuerzas del Gobierno Civil en las immediaciones de lugar conocido como “Fuente Grande”, fue passad por lar armas después de haber confessado, siendo enterrado en aquel paraje», lugar vizinho de Granada. Adiante, o texto da comunicação secreta do governo franquista, avança com as razões que estiveram na origem do assassínio (por fuzilamento) do autor de Romanceiro Cigano (1928), «Estaba tildado de prácticas de homosexualismo [sic] y estaba conceptuado como socialista».
Entretanto, iniciaram-se buscas arqueológicas para encontrar o corpo do poeta que, estou em crer, a Espanha honrará dando-lhe por fim o descanso eterno!