Joaquim Palminha Silva |
Os salões do Paço Real de Évora, «a par de S. Francisco», de D. Manuel I a D. João III, assistiram a várias encenações de autos e farsas de mestre Gil Vicente, presumindo-se que aí tiveram lugar o Auto Pastoril Português, o Auto de Mofina Mendes, a Floresta de Enganos além da penúltima peça da carreira do autor,Romagem dos Agravados (1533).
O próprio Gil Vicente, em cena no Palácio Real d’Évora,
segundo uma aguarela do pintor Roque Gameiro.
No decurso de cerca de trinta anos de representações em Évora, pelo menos desde 1502, a Romagem dos Agravados, que se presume tenha sido levada à cena na cidade, é a obra mais ousada de Gil Vicente. Segundo cremos, a partir de 1536 deixa de haver registo sobre a existência de Gil Vicente, porque entretanto deve ter falecido no mesmo Paço Real«a par e S. Francisco», desconhecendo-se em que parte do Palácio ou da igreja foi efectivamente sepultado.
Na Romagem dos Agravados, em vez de fazer a crítica às figuras da sociedade exteriores ao Paço Real, Gil Vicente faz entrar na peça as figuras que estavam sentadas muito próximo do Rei, personagens até então intocáveis. A sua crítica vai mesmo mais longe, pois cita-os pelos nomes verdadeiros, demonstrando-lhe que não eram imunes.
Mais de um investigador aponta a existência desta obra como tendo sido a causa do silêncio de Gil Vicente, pois os visados terão feito actuar as suas “capacidades” para silenciarem o “atrevido”, que se estava a tornar inconveniente.
O Paço Real de Évora era então o local onde residia, em permanência, um corpo de gente insinuante e inatingível. Gil Vicente começa logo por nos dizer que esse perímetro é, pois, o espaço da intriga, portanto, despido de nobreza d’alma. Frei Paço, personagem simbólico da instituição real, vê concentrar-se em sua volta uma roda de figuras tocadas profundamente pela prática de todo o tipo de injustiças. Todavia, Frei Paço não está ali para investigar razões e levar a bom porto que justiça seja feita, pois sabe os seus limites. Frei Paço está ali para anotar o sucedido, registar as queixas dos que se sentem molestados pela injustiça.
O Paço Real de Évoraacolhia um número significativo e qualificado de servidores, desempenhando funções mais ou menos importantes na gestão diária do imenso e diversificado espaço. Tinha aqui, portanto, de forma definitiva ou provisória, cama, mesa e dormida um pequeno “exército”. Os que não desempenhavam funções consideradas nobres e importantes aposentavam-se em camaratas colectivas (implicando a separação dos sexos, nem sempre rigorosamente vigiada), possuindo cada qual arca própria para guardar os seus pertences. Os que desempenhavam funções mais elevadas na Corte tinham alojamentos individuais (desembargador, escrivão da Fazenda, tesoureiro-mor, confessor, camareiro, vedor, etc.), e podiam ter ao seu serviço um ou mais criados.
Pela data de produção da peça de teatro, proximidade da morte de Gil Vicente, o Paço Real que aparece nesta obra satírica, bem como no desempenho dos personagens, não nos deixa muitas dúvidas: - A fonte de inspiração da obra foi o Paço Real de Évora«a par de S. Francisco»!
Entretanto, devemos aceitar que a liberdade das expressões e conceitos empregues por Gil Vicente, não terá sofrido grandes restrições, pois o Tribunal do Santo Ofício só veio a instaurar-se no Reino, por vontade de D. João III, no ano de 1457.
Nos tempos que correm, vale a pena recordar parte (mínima) das palavras de Frei Paço:
O auto que ora vereis
Se chama, irmãos amados,
Romagem dos Agravados,
Inda que alguns achareis
Que se agravam de abastados.
Na realidade, a sua veia satírica não poupou ninguém, as “vítimas” de Gil Vicente são tão numerosas que, para as identificar social e profissionalmente, será necessário estabelecer linhas de investigação que levem a um ensaio específico.
O mais importante neste desaparecido Paço Real de Évora, de que só resta pequena parte no Jardim Público da cidade (Galeria das Damas), a que erradamente se chama «Palácio de D. Manuel», reside no facto dele ter servido de inspiração a um dos autos menos representados de mestre Gil Vicente, e não por este edifício poder ser objecto de comemoração este ano (2015), dado supostamente ter 500 anos de existência…
Pensa-se que Gil Vicente faleceu ainda ao serviço da Corte, no Paço Real de Évora (m. depois de 1536). O jornalista alentejano João Rosa (vd. Alentejo a Janela do Passado, Lisboa, 1940) garante-nos que na Igreja de S. Francisco existiram árias sepulturas de figuras notáveis e, como tal, reconhecidas na época. Segundo este autor na igreja de S. Francisco deveriam repousar os restos mortais do fundador do Teatro em Portugal e de sua mulher, Branca Bezerra. No entanto, na altura em que se fundou a denominada «capela dos ossos» (constituída provavelmente no reinado filipino), as obras terá determinado a perda da sepultura de Gil Vicente, ficando desde então desconhecido o seu paradeiro.
Diogo Barbosa Machado, na sua «Biblioteca Lusitana» (1741-1759), garante-nos que a sepultura de Gil Vicente (que dá como falecido em 1539) terá existido no corredor que liga a igreja à «capela dos ossos» …
Com obras monumentais neste momento, será útil investigar o que for possível no corpo interior da igreja de S. Francisco, tendo em vista encontrar o que resta da sepultura de Gil Vicente…
Entretanto, para além da estapafúrdia efeméride (500 anos?) do dito “Palácio de D. Manuel”, a Câmara Municipal de Évorabem poderia “convocar” o CENDREV (se não é “sobrecarregar” de “muito” trabalho este agrupamento teatral!) para levar à cena a Romagem dos Agravados, já que a cidade, para não destoar da sua desmemória tradicional, nunca se lembrou de erguer monumento (estátua) a Gil Vicente!