Joaquim Palminha Silva |
«Comunhão
Falo do sacramento do silêncio.
Da muda eucaristia
Da vida,
Quando no mundo não havia ainda
Palavras
E ninguém profanava
A terra que pisava.
- Miguel Torga, in Orfeu Rebelde, 1970.
*
Não se saberia o ritmo da vida sem o espaço que o silêncio preenche… Não haveria música sem a organização sistemática e imaginativa da pausa…
Silêncio nas povoações, pelos caminhos, nos campos. Silêncio que é apenas interrompido pelo ruído de cor trigueira da labuta e, passando o tempo desta, lá volta ele, solene e reconfortantes, apenas entrecortado pelo som da Natureza a germinar…
Entre nós, sociedade humana, há silêncios que descem pelas conversas e, convictos da importância do seu papel proporcionador de reflexão, nos tocam como em instrumentos de corda para nos provocarem harmonias de lógica e razão sempre diferentes…
Num passado não muito distante, o silêncio ocupava o espaço da vida completando-a. Voava então de dentro de cada um para a circunvizinhança, a matar a sede de meditação à borda de uma decisão, de uma dor, de um breve momento de felicidade. Dizia-se então, «Bom silêncio vale mais que uma pergunta».
Em tempos que já lá vão houve silêncios irreverentes, condenados pela moral em nome dos “bons costumes”… Silêncios que golpeavam o meio ambiente com a eloquência de um discurso subversivo. Silêncios que povoaram, no decurso de milénios, o tumulto da vida humana, e que foram companheiros do avisado pensamento revolucionário.
Houve um tempo em que o mundo (o nosso pequeno mundo) foi uma sinfonia, funcionando o silêncio como indício dos seus andamentos e indicando, como um traço, os tempos propícios para a percussão dos sentidos. O silêncio servia então de encosto ao Homem… E neste sentido, abriu-se-lhe em inúmeras expedições, acompanhando-o pelo mundo e escutando-o, tal a voz de Deus!
Desde a segunda metade do século XIX que o silêncio, ensurdecido pelo Homem, abandonou o planeta, emigrando para o Cosmos…
As arrojadas concepções da vida moderna, a repartição do tempo através de várias espécies de ruídos, cuja suposta finalidade seria possibilitar maior qualidade de bem-estar, progredindo e diversificando-se foram, assim, colonizando os espaços livres para a existência do silêncio. Aos poucos, o silêncio, como um novo e desconhecido continente, viu invadido e explorado o seu território por bárbaros pioneiros sem escrúpulos. Paulatinamente, o silêncio foi sendo empurrado para “reservas” cada vez mais cercadas e limitadas, como se fosse periclitante tribo de índios navajos, em nome das carências de espaço para expansão da soberba “civilização material”: - Com a brutalidade do colonizador “armado até aos dentes”, o cruel despotismo do ruído foi ocupando território, expulsando o manso silêncio, espadanado pelos rodízios metálicos do “progresso”…
Entretanto, o Homem passou a considerar o silêncio retrógrado e a sua “arcaica” bondade, a sua fala providencial, as suas maneiras de patriarca denso e lento no passar do tempo, algo de obsoleto, museológico. O destronar do silêncio foi tal e tanto que o Homem já só concebe o acasalamento da sua vida com o “bem-estar” material e espiritual através do brocar ininterrupto de milhares de formas de ruído.
Além dos favores do Estado, o ruído “democratizou-se” como se fosse uma lógica de convívio, um estímulo para trocar o silêncio pela sociabilidade, atingindo assim, recuperado e travestido pelo consumismo, o “self-service” dos barulhos!
O mundo crepita e estala, assobia e explode, bufa e range com fragor, impaciente por descarregar, além de todas as estereofonias, os sons especiais da “idade electrónica”. Enfim, o silêncio passou a ser visto como prejudicial para o desenvolvimento da personalidade… Na realidade, o Homem levou séculos e séculos a desembaraçar-se do silêncio, recorreu mesmo à guerra para produzir bombásticos barulhos: - E conseguiu afastar o silêncio da “civilização”!
Pobre silêncio! Nem no imenso Saara, seu derradeiro refúgio no planeta, se consegue proteger, perseguido pelos ruídos das provas “milionárias” do desporto motorizado…
Os mais lúcidos dos finais do século XX e princípio do XXI protestam. Recorre-se à maça da Lei. – Decretam-se sancções contra a «poluição sonora»!...
Demasiado tarde… A voz do grande espírito não volta por decreto! – O Homem foi-se despojando do silêncio e, assim, perdeu a capacidade para escutar a voz da sua consciência…
Se falasse, o silêncio diria: - «Não tenho pena nenhuma do Homem, pois além de ignorante é soberbo. Procurou humilhar-me e ofendeu-me na minha dignidade, sem eu lhe ter feito mal. Chamou-me parvo e retrógrado… Parvo e energúmeno é ele que não soube o que fez!».
Capturado por fragores violentos, prisioneiro do ruído, completamente alienado, o Homem treme a todo o instante, se por acaso um pedaço de silêncio, pairando na atmosfera, tomba de mansinho sobre a sua cabeça, para o acariciar: - O Homem passou a ter medo dos «anjos»!