No remoto ano de 1880, Évora aparece-nos menos deprimida e triste do que a cidade que hoje se nos apresenta, talvez por “excesso” de “vitamina” patriótica… Talvez porque havia então muita esperança no próximo século XX, com a previsível queda do regime monárquico e instauração de uma República “Democrática”, não muito burguesa e pouco autoritária, supunham idealistas e ingénuos…
As comemorações do tricentenário da morte de Luís de Camões agruparam um conjunto de intelectuais de grande projecção nacional (Teófilo Braga, Ramalho Ortigão, Pinheiro Chagas, Jaime Batalha Reis, Magalhães Lima, Luciano Cordeiro, etc.), bem como dirigentes republicanos de gabarito, a que se associaram agremiações artísticas, associações populares e representações profissionais de todo o País. O cortejo cívico que desfilou em Lisboa deixou bem patente, face ao rei D. Luís e ao Poder político (Partido Progressista), um desses raros momentos históricos, de grande unidade cívica, anunciando mudança de regime e… de mentalidades!
Foi, por conseguinte, numa atmosfera de grande apoteose nacional que a presidência e vereação do Município eborense também se manifestaram pró-Luís de Camões!
Mas os nossos queridos conterrâneos de então primaram pelo inédito. Adiante…
Era presidente da Câmara Municipal de Évora o cidadão José Carlos de Gouveia (1844-1903). Porém, surpresa das surpresas, este presidente tinha uma qualidade que o distinguia dos demais: - Escrevia peças de teatro (A sociedade), dramas líricos (O Fantasma de Almourol) e poesias de muito “comprimento”, a Duqueza de Bragança, por exemplo, tinha 8 cantos!
Pouco sei, talvez porque escassa seja a informação que chegou até aos nossos dias, das largas páginas literárias deste prestimoso autarca… Porém, de repente, a memória puxa-me um pouco pela manga do casaco, para receber ao ouvido estas informações: - José Carlos de Gouveia, morador no Largo Alexandre Herculano, nº 5, proprietário de soberba biblioteca e da mais completa colecção de gravura antiga, foi deputado às Cortes, Governador Civil, Provedor da Misericórdia e da Casa Pia e, last but not least, chefe local do partido do Governo.
José Carlos de Gouveia não era, portanto, personagem vulgar… Abrigando-se à sombra das comemorações do 3º centenário da morte de Luís de Camões, levou a sua vereação a aceitar que a cidade tivesse participação no acontecimento acima do comum. Recomendou iluminações públicas nas artérias onde tal era possível, engalanou o edifício municipal (gracioso imóvel manuelino na Praça de Giraldo, no local onde se ergue hoje o “pesado” Banco de Portugal), pediu a Lisboa o molde da estátua a Camões e, para os festejos do dia 10 de Junho, fez erguer no centro da Praça de Giraldo um obelisco de madeira, encimado pela réplica da estátua do poeta. Acrescente-se agora ao conjunto o fogo-de-artifício e a interpretação de peças musicais apropriadas, por duas filarmónicas locais. Por fim, fechou o conjunto a execução, patrocinada pela Câmara Municipal de Évora (e a mando do presidente), do busto de Luís de Camões e Vasco da Gama, em mármore da região.
Quer-se uma página curta, mas com o seu quê de desilusão sentimental, com um pedaço de cor local e soluço reprimido, fazendo arfar o “peito”… às palavras? Ora aí vai emoção! …
Do conjunto destas remotas comemorações sobraram os dois bustos de mármore (Luís de Camões e Vasco da Gama). Até 1883, os sisudos bustos olharam os circunstantes na sala de sessões do edifício na Praça de Giraldo. Com a demolição dos Paços do Concelho, a queda da Monarquia e mudança de regime político, os bustos também mudaram, passando a habitar o salão nobre da Câmara (1912), sediada desde então na Praça de Sertório… Depois, tombou a República frente ao golpe militar e vieram os 46 anos de ditadura salazarista, os bustos hibernaram não se sabe onde…
Finalmente, após a queda da ditadura, com o regime democrático instalado em Abril de 1974, a presidência e vereação da Câmara Municipal de Évora, no ano de 1975 (não sei como e por que estapafúrdia razão), decidiu acintosamente desterrar, através dos evocativos bustos de mármore regional, os dois “heróis” nacionais, Vasco da Gama e Luís e Camões, colocando-os em local só temporariamente acessível ao comum dos cidadãos: o vestíbulo do 1º andar da Galeria das Damas (vulgo Palácio de D. Manuel) no Jardim Público. No entanto, foi pouco o tempo que os dois bustos puderam aí “descansar” de tanta mudança… política!
Entretanto, a mais absurda e a mais violenta mudança, se me permitem assim dizer, caíram sobre os dois “camaradas” de infortúnio: - Alguém decidiu atirar os bustos para um desterro menos retórico e mais cru, colocando-os, sobre as suas colunas de pedra, na varanda do 1ºandar do imóvel, mas do lado de fora, ladeando o portal manuelino, para “sofrerem” as intempéries, sujeitos, pois, aos “rigores meteorológicos”, longe do eventual olhar condoído de algum cidadão!
Passou tempo e passaram executivos de Câmara Municipal de feição comunista, depois socialista, novamente comunista… Mas Luís de Camões e Vasco da Gama continuam desterrados: - Feitas as “contas”, tenho de concluir que esta atitude municipal não é um caso de opinião política deste ou daquele executivo, mas sim uma sucessiva falha de sensibilidade autárquica… e uma injustiça! Quase um insulto a todos quantos, livremente, sem preocupações de agradar aos políticos da moda, prezam as letras portuguesas e apreciam a História da sua Pátria!
Vai a Câmara Municipal Évora festejar os 500 anos do edifício manuelino do Jardim Público: - Não é preciso estabelecer detalhes nem nomear pourparlers, aproveitem os actuais autarcas a ocasião e libertem do desterro os nossos heróis (que não fizeram mal a ninguém!), e devolva-os a 10 de junho deste ano, com pompa e circunstância, ao lugar que merecem no seio da velha urbe!
Para saber mais: Vd. revista A Cidade de Évora, nº67-68, 1984/1985, edição Câmara Municipal de Évora.
Imagens : busto em mármore de Luís de Camões e Vasco da Gama, edifício manuelino dos Paços do Concelho na Praça de Giraldo. Praça de Giraldo em 10 de junho de 1880.