![]() |
Joaquim Palminha da Silva |
Ramalho Ortigão
(1836-1915)
De seu nome completo José Duarte Ramalho Ortigão, grande amigo e companheiro de ideias de Eça de Queirós, foi filho de abastada família do norte, o que segundo Augusto de Castro (in estudo introdutório de As Farpas, t. I, Lisboa, 1944) ficou sempre «pela vida fora, na compleição, nos hábitos, nas aspirações, no paladar e nos músculos, um homem do Norte». Estudante universitário em Coimbra, não chegou a concluir nenhum curso, o que não foi obstáculo para adquirir vasta erudição e excepcional mestria na escrita. Estudante por conta própria, acumulou vastos conhecimentos de história da Arte e, sobretudo, de Arquitectura da Renascença.
Em 1862 estreou-se como escritor no Jornal do Porto, exercendo a actividade de crítico literário. Entrou em polémica com o grupo de estudantes iconoclastas de Coimbra (Antero de Quental, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, etc.), sobretudo contra a forma desassombrada como esta tertúlia atacou o velho poeta António Feliciano de Castilho (1800-1875), cego e já muito doente, com o folheto, Literatura de Hoje (1866). Época romântica de duelos por questões de honra e orgulhosos pessoais feridos, as suas opiniões levaram-no a bater-se em duelo no Porto com o autor das Odes Modernas (Antero de Quental), de quem aliás acabou por ficar amigo e companheiro, no seio do grupo Vencidos da Vida (1888), composto por Oliveira Martins, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Carlos Mayer, marquês de Soveral, António Cândido, conde de Ficalho, conde de Sabugosa, Bernardo Pindela e Carlos Lobo d’Ávila. Grupo de 11 intelectuais dos finais do século XIX, pessimistas sobre o evoluir socio-económico da sociedade portuguesa em geral, mas muito especialmente sobre a generalizada mediocridade e subserviência cultural, em relação ao estrangeiro (sobretudo a França). .
Como acutilante registou Eça de Queirós: «Diz-se geralmente – Ramalho Ortigão autor de As Farpas; não seria inexacto dizer – As Farpas autoras de Ramalho Ortigão». Na verdade, foi com a edição de As Farpas (1871 a 1882) que Ramalho Ortigão marcou para a posteridade a sua presença, como pedagogo e grande interventor cultural e cívico em todas as estruturas da sociedade portuguesa, nos finais do século XIX e primeiros anos do XX. As Farpas não deixaram escapar nenhum aspecto da sociedade e, por isso, «constituem um sistemático e quase completo curso de sociologia do Portugal da Regeneração, observado de alto a baixo […]», (João Medina, artigo in Dicionário de Eça de Queirós, de A. Campos Matos, Lisboa, 1988).
A grande diversidade de temas cobertos por As Farpas de Ramalho Ortigão (Religião, História, Política, Literatura, Costumes, Património artístico e cultural, Gastronomia, hábitos de higiene, construção de habitações populares, cancioneiro popular, etc.), a forma didáctica e descritiva como foi elaborando os textos e análises críticas, levaram Ramalho Ortigão a desempenhar um papel de pedagogo que muito ultrapassou o seu tempo.
Na sequência do seu labor e empenhada defesa do património histórico-cultural de Portugal, o Poder político entendeu (finalmente!) chamar Ramalho Ortigão a desempenhar um papel importante na Comissão e, depois, Conselho Superior de Monumentos Nacionais(1898). Nesta qualidade, os seus pareceres, enviados às autoridades (Ministério das Obras Públicas e Câmaras Municipais), mais de uma vez se debruçaram sobre Évora e o seu património. São dele, a mais de um século de distância, estas actuais palavras sobre Évora (de que respeitamos a ortografia), dissertando sobre um conjunto de temas que hoje intitulamos de patrimónioimaterial e material:
«Mas eu é que não posso deixar de dizer á cidade de Evora, que o que a ella nos atrae e n’ella nos retem não são as suas novas avenidas, nem as suas praças, nem o seu lindo teatro, nem o seu bello Passeio Publico. O que em Evora nos embelleza e nos encanta, são os seus velhos mosteiros, as suas antigas egrejas, os nomes das suas primitivas ruas, estreitas e sinuosas, tão curiosos e tão arcaicos como o de Valdevinos, o de Alconchel, o das Amas do Cardeal, o do Alfaiate da Condessa; são os quadros incomparáveis do seu paço archiepiscopal; são os variadíssimos documentos da sua architectura ogival e da sua architectura da Renascença, tão especialmente amoiriscada n’esta parte do Alemtejo; são os restos das suas antigas industrias locaes, a olaria, a tapeçaria, a caldeiraria, a sellaria e a carpintaria de moveis; é talvez ainda a sua tradicional cosinha, a doçaria famosa dos seus conventos, a sua honrada assorda de cuentros, e o seu bolo pôdre, de farinha milho, azeite e mel, como o que se comeria talvez, entre hebreus da Bíblia, á mesa de Abrahão.» (1).
Que nos pode dizer a Câmara Municipal de Évora a propósito dos cem anos do falecimento de Ramalho Ortigão, enquanto se prepara para comemorar uma efeméride controversa (500 anos!) sobre o que denomina “Palácio de D. Manuel”? Não se poderia associar, o que nos parece lógico e gratificante, a defesa do património feita por Ramalho Ortigão e as comemorações do dito “Palácio de D. Manuel”? De alguma forma, não se poderia dar albergue a Ramalho Ortigão no imóvel do Jardim Público? – O facto é que Évora deve estar agradecida, à grande e benéfica influência que Ramalho Ortigão exerceu durante muitas décadas nos procedimentos oficiais, então praticados tarde e a más horas para salvaguarda do património …
-------
(1) - Ramalho Ortigão, O Culto da Arte em Portugal, 1896 (existem várias edições).